06/05/20

Solidariedade e egoísmo em tempos de pandemia

O portal de notícias G1 calculou que, durante a pandemia de Covid-19, as lives de cantores em redes sociais já arrecadaram mais de mil e quinhentas toneladas de alimentos (Foto: Reprodução/Internet)

Épocas de crise como a que vivemos agora podem provocar muitas reações. O isolamento social causado pela pandemia de Covid-19 fez parar todos os serviços que não são considerados essenciais e pôs em risco o sustento de muitas pessoas.

Em momentos como este, dois movimentos são evidenciados: por um lado, o comportamento de manada que faz as pessoas correrem para os supermercados e comprarem grandes estoques de insumos, o aumento de denúncias ao Procon sobre preços abusivos de álcool em gel e até grandes empresários relativizando mortes de pessoas mais velhas em prol da manutenção da economia.

Por outro lado, indivíduos se prontificam a fazer compras para idosos que não podem sair de casa, artistas se organizam em lives ao redor do mundo para arrecadação de alimentos e movimentos populares se unem em busca de ajudar pessoas menos favorecidas.

Prateleiras vazias na seção de papéis higiênicos no supermercado Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro/RJ (Foto: Marcia Foletto/Agência O Globo)

Prateleiras vazias na seção de papéis higiênicos no supermercado Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro/RJ (Foto: Marcia Foletto/Agência O Globo)

Mas como explicar esses fenômenos? Alguns especialistas atribuem as correrias por insumos ao que eles chamam de panic buying ou compras motivadas pelo pânico em português. Um comportamento causado pela sensação de medo quando alguém pensa "o que poderia acontecer se todos comprarem algo de que precisamos, menos eu?”. Fernando Pimentel, doutor em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e professor de Pós-graduação em Psicologia na Faculdade de Quixeramobim (UNIQ), explica que esse comportamento pode estar ligado ao egoísmo do ser humano:

“A questão do egoísmo está diretamente ligada a quê? À nossa necessidade de sobrevivência. Em 1976, Richard Dawkins escreveu um livro chamado 'O gene egoísta' e, segundo ele, o organismo é apenas uma máquina de sobrevivência. E aqui há uma questão polêmica que é a perspectiva do determinismo ou a perspectiva do livre arbítrio. Dawkins vai na direção do primeiro caminho, no sentido de que nós somos muito influenciados pelos nossos genes. Porém, lá na frente, ele fala que na verdade nós somos capazes de evoluir e que, segundo ele, agora nós já seríamos capazes de nos emancipar dos genes egoístas.”

Fernando reforça as ideias de Dawkins e completa afirmando que, com nossa evolução enquanto indivíduos, desenvolvemos necessidades mais complexas e nos orientamos para o social. Nesse sentido, os movimentos sociais emergem e convocam a população a olhar para as pessoas em situações menos favorecidas. Até o início do mês de abril, o portal de notícias G1 calculou que as lives de cantores em redes sociais tenham arrecadado mais de mil e quinhentas toneladas de alimentos. E as doações em dinheiro já podem ter chegado a mais de um milhão de reais.

Entrega de alimentos realizada pelo projeto "Quilo de Amor" no Titanzinho (Foto: Rubenia Santos)

Entrega de alimentos realizada pelo projeto "Quilo de Amor" no Titanzinho (Foto: Rubenia Santos)

O Bom Jardim Em Luta é um projeto criado por causa da pandemia de Covid-19 para auxiliar as famílias do bairro, arrecadando insumos de higiene e alimentação. Eduardo Marques, integrante do movimento, acredita que a mobilização gera impactos positivos para além da pandemia:

“Quase todos que articularam e construíram essas campanhas são pessoas que também já vinham construindo os movimentos sociais, já vinham fazendo um trabalho de base. Então eu acho que, agora, as redes que a gente conseguiu formar, a gente vai querer estar mais por perto, justamente dos nossos territórios. Então eu acho que a campanha veio para fortalecer também os nossos vínculos com a nossa comunidade e com as pessoas que a gente já tem se articulado há muito tempo. Eu acredito que as coisas vão ficar mais concretas no sentido de dizer que agora as pessoas vão estar mais próximas, vão estar contribuindo com as outras, que vão estar se importando cada vez mais com a luta social.”

A idealizadora do Quilo do Amor, que arrecada alimentos e material de higiene para as famílias carentes do bairro Serviluz, Rubenia Santos, iniciou o projeto bem antes da crise causada pelo novo coronavírus. Ela doava para outras famílias as próprias cestas básicas que recebia do trabalho. Rubenia adverte sobre a situação nas comunidades durante a pandemia e fora dela:

“Nas favelas é bem difícil esse momento. Mas, quando passar, também é difícil. Sempre foi difícil pra galera que mora aqui. Até porque todas as casas e famílias têm muitas pessoas. E são pessoas que vivem de pesca, são pessoas que são garçons em barracas, que vendem lanche na praia e nem todos os dias são bons. E aí todos os dias a gente precisa comer, né? Para essas pessoas é bem difícil. Espero que as pessoas tenham consciência e lembrem-se de ajudar o próximo.”

A cantora Marília Mendonça arrecadou doações para o projeto Mesa Brasil Sesc em sua live no YouTube (Foto: Reprodução/YouTube)

A cantora Marília Mendonça arrecadou doações para o projeto Mesa Brasil Sesc em sua live no YouTube (Foto: Reprodução/YouTube)

Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor da Unifametro, Secundo Neto reforça a orientação do ser humano para o social. Para ele, unir-se em uma vida coletiva é próprio da condição humana e é inevitável que reações como os movimentos populares surjam em meio a momentos de crise. Mas também faz um alerta sobre a caridade historicamente praticada aqui no Brasil:

“Eu gosto de pensar junto com Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, né? Nós temos uma perspectiva de fato muito ‘Santa Casa de Misericórdia’ historicamente. Mas o que eu preciso pontuar nessa história é que essa perspectiva caridosa difere de uma perspectiva, se a gente pode dizer, própria dos partidos de esquerda ou das movimentações político-partidárias para resolver de fato os problemas estruturais da sociedade brasileira. A desigualdade, que, nesse país, é formada desde a mais tenra infância da nossa história, não é resolvida com ações caridosas ou ações solidárias, mas sim com ações políticas de reformas estruturais fundantes, pra gente diminuir cada vez mais essa desigualdade.”

Segundo o Índice Mundial da Solidariedade, 33 milhões de brasileiros fazem doações em dinheiro para organizações da sociedade civil, pelo menos uma vez por ano, mesmo quando não há lives. Sobre as ações citadas na reportagem, você pode encontrar mais informações aqui e aqui.

Reportagem de Gambit Cavalcante com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira

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