12/06/20

Transcrição Universitária Entrevista #50 – Gabriel Aguiar

Carolina Areal - Gabriel, eu estou muito feliz de poder conversar contigo. Eu já te acompanhava nas redes sociais. Sim, você tem vários seguidores aqui em Fortaleza. E o que me chama muita atenção é porque você é muito novo. Acho que você tem 24 anos. E um pouco do que eu estava pesquisando sobre você, eu ouvi uma reportagem, uma matéria que você participou, em que você falava que você já atua em defesa do meio ambiente a cerca de 10 anos. Você é formado em biologia pela UFC e atualmente é mestrando em Ecologia e Recursos Naturais, também pela UFC. Como é que foi que você decidiu que você queria mesmo era lutar e proteger o meio ambiente?

Gabriel Aguiar - Então Carolina, antes de tudo é um prazer estar aqui. Agradeço muito o convite. E de fato, essa é uma luta que iniciou na minha adolescência. Desde pequeno meu pai trabalha com essa parte de permacultura da parte no sertão, principalmente aqui do Ceará. Trabalhava em ONGs já há muito tempo e costumava me levar. Então eu via a realidade da seca, a realidade das demandas relacionadas a agricultura, as problemáticas com o agronegócio. Então desde adolescente eu comecei a entrar nessa questão. E, em segundo plano, relacionado aos parques aqui de Fortaleza. Existia o Movimento Proparque, ali no Parque Rio Branco, que eu costumava ir também. Então eu já estava muito ligado a essa questão. Além de sempre gostar de natureza, o que eu acho que é comum a muita gente. Então, desde muito pequeno eu ia acampar, eu ia pra cachoeira, eu ia para serras, praias. Então sempre tive esse apreço muito grande. E aí quando veio a formação, o curso de biologia, foi algo que só se solidificou. Era mais ou menos isso. E eu fico muito feliz de ver hoje que tem gente, também, se juntando, individualmente ou em coletivos, ou em ONGs. E Fortaleza cada vez mais tem uma presença ambientalista marcante.

Carolina Areal - Isso é verdade, Gabriel. Um dos movimentos mais marcantes, pra mim, nessa minha trajetória aqui em Fortaleza é essa questão do Parque do Cocó, a questão do Ocupe Cocó, que foi em 2013. Eu acho que ali também pra mim, ainda estava na faculdade, ainda conhecendo um pouco mais de tudo, da vida, e acho que o Ocupe Cocó também foi muito marcante para mim. Alí eu tive um contato de como existem muitas pessoas preocupadas com o meio ambiente, sejam pesquisadores, ativistas ambientalistas, ou então a comunidade de uma maneira geral. E você consegue reunir um pouco disso tudo. Você é ativista, é ambientalista e é pesquisador. Como é que você consegue reunir todas essas funções e qual a importância delas? Porque, infelizmente, a gente ainda vê que tem muita gente que não valoriza essas atuações.

Gabriel Aguiar -  Certamente, você tocou num tema que eu acho que é um dos principais, pessoais mesmo para mim, que é a ocupação do Cocó. Ali foi um divisor de águas na minha vida, acredito que pra muita gente, apesar de eu já ter essa conexão com as causas ambientais anteriormente. Mas isso que você colocou agora de tentar unir a academia ao engajamento socioambiental foi algo que se fortaleceu e se alavancou com a ocupação no Cocó, especificamente. Porque antes disso, digamos assim, que o meu foco, meus anseios, minha vontade, era me dedicar com foco quase total a academia e a produção científica. Eu tinha na minha adolescência esse grande sonho. E aí a ocupação no Cocó chacoalhou tudo isso. Me mostrou realidades que eu não conhecia. Os conflitos de interesse no espaço urbano, as pressões do capital imobiliário sobre a vegetação nativa, vários pesquisadores engajados que eu tive o prazer de conhecer durante a ocupação. Pessoas de várias áreas afins: a área do direito ambiental, a área de gestão ambiental, área de urbanismo, além da própria ecologia e conservação. Então, eu fui exposto ali na ocupação a toda uma complexa realidade que eu, apesar de já conectado, não tinha contato ainda. Então, para mim, foi muito transformador. E eu entrei na universidade já me transformando. É interessante, Carolina, que a ocupação ocorreu em 2013. Foi exatamente na época que eu entrei no curso de biologia, na graduação. Então, eu fiquei todos os dias da ocupação, que deu 83 dias, mais ou menos. Eu dormia na ocupação e ia de manhã para a universidade, nos primeiros dias de aula. Então, o meu primeiro contato com a universidade já foi assim. Eu tava morando na ocupação e estudando na universidade. Eu ia da universidade para a ocupação e da ocupação para a universidade. Eu tinha que estudar lá. Às vezes tinha as ameaças de violências policiais, de pessoas que estavam no entorno, coisas assim, e eu lá lendo o livro de Ecologia. Então, desde o início da minha graduação já foi tudo muito misturado, tanto que hoje eu não separo. Há desafio, né Carolina,  porque a gente sabe que dentro da pesquisa científica, sobretudo se for ciência dura né, ciências naturais, a gente precisa ser um observador desinteressado. A gente não pode participar do nosso objeto de estudo ativamente, já que precisa ser uma análise imparcial. Então, o desafio é esse. Porque, quando você está no ativismo, você está muito envolvido afetivamente com o seu objeto. Já na pesquisa científica não. Você tem que ter um distanciamento pra enxergar melhor, para separar melhor. Então, isso me permite uma análise diversa, que eu gosto muito, de ver de um lado e do outro. Então a academia, a pesquisa, me coloca numa visão mais racional, pragmática, objetiva, que me obriga a me ater aos dados da realidade. Enquanto que o ativismo me permite tentar transformar aquela realidade, tentar modificar aquela realidade com práticas. Isso eu considero um privilégio, me deixa muito feliz.

Carolina Areal -  Então, por falar em Parque do Cocó, a sua pesquisa de mestrado, ela tem uma relação direta com o Parque do Cocó. A gente estava conversando um pouco antes dessa entrevista, você estava me falando que o objetivo do seu trabalho é entender os impactos de gatos domésticos na fauna silvestre. Quem conhece Fortaleza ou quem já veio aqui visitar, passear por Fortaleza, provavelmente já foi ao Parque do Cocó e já viu que lá existe uma quantidade muito grande de gatos. Mas não só no Cocó. A gente pode ver isso no próprio Campus do Pici, na UFC. A gente pode ver no Campus Itaperi da UECE. No Parque Rio Branco. Enfim, existem vários lugares em que, infelizmente, as pessoas chegam e abandonam esses animais. Então, eu queria que você explicasse um pouco para gente sobre essa pesquisa de mestrado e o porquê de estudar o impacto dos gatos domésticos na fauna silvestre.

Gabriel Aguiar - Então Carolina, esse é um assunto extremamente sério. Na realidade, ele é bastante subestimado e pouco a gente dimensiona o tamanho desse problema. Só introduzindo, os gatos domésticos são uma espécie asiática. É um predador estritamente carnívoro, que foi trazido pelos seres humanos para cá para controle de pragas. Ele  foi domesticado ali no Crescente Fértil para controlar pragas que estavam afetando o cultivo de grãos, o acúmulo de grãos, daqueles povos do Crescente Fértil. Depois virou um animal de carinho, de afeto, de cuidado do ser humano e se espalhou pelo mundo inteiro. Só que o gato nunca perdeu as suas características de predador. Então, Carolina, junto com outras espécies, hoje o gato integra essa problemática das espécies exóticas introduzidas, que é hoje a segunda maior causa de perda de biodiversidade do planeta Terra. Então, animais e plantas exóticas introduzidas, como o gato, hoje são a segunda maior causa de perda da biodiversidade, perdendo só para a destruição dos habitats. Então, é um problema muito sério. A gente chega a ver, Carolina, cada gato por mês matando cinco animais silvestres. Pode parecer pouco, mas se você pensar em 100 gatos, são quinhentos animais silvestres mortos por mês. Um número bastante alto! Então, lá no Cocó, por exemplo, tem áreas que chega a 150 gatos. Então, dá em média 750 animais silvestres mortos por mês. Isso é muito mais do que qualquer outro impacto! No parque do Cocó, por exemplo, que é uma área que já está protegida pela legislação, eu posso dizer que a presença de gatos lá é a maior causa de perda de biodiversidade. Então é um problema bastante sério. E na situação de abandono, que ocorre muito, ou seja, as pessoas ilegalmente, criminosamente, abandonam esses animais. Você vai ter o sofrimento dos gatos, que estão numa situação de exposição a atropelamentos , a envenenamentos, a maus tratos, uma série de problemas, doenças. E a fauna silvestre, também, numa situação bastante perigosa. Então é uma situação bastante insustentável, que precisa ser encarada de uma maneira séria e de uma maneira técnica. Então a minha pesquisa, Carolina, ela trata de avaliar e analisar os impactos causados por esses animais, os gatos, na fauna silvestre. Já que há, às vezes, uma incerteza quando a gente trata de áreas continentais, áreas que não são ilhas. A gente tem caso  bastante bem documentados, como em Fernando de Noronha. Em outras ilhas que os gatos são introduzidos, alí na Nova Zelândia, também. E a gente tem os dados bem claros de extinção de várias espécies. Chegando até a um gato apenas extinguir uma espécie em uma ilha. Apenas um gato.

Carolina Areal - Nossa!

Gabriel Aguiar - Em áreas abertas, como o Parque do Cocó, a gente tem, às vezes, uma lacuna de dados. Então, na minha pesquisa, eu utilizo o Parque do Cocó como modelo. Eu considero áreas bastante semelhantes de mesmo tamanho, mesmas dimensões. Uma com gato e uma sem gato. Para analisar os impactos que ocorreram naquela área com a presença de gatos. Que é o impacto de, sobretudo, defaunação, que é quando você retira espécies daquela comunidade que habitava ali. Isso dá um efeito ecológico em cadeia muito grave em que a gente perde dispersores de sementes. A gente perde elos importantes da cadeia alimentar. A gente perde toda uma série de ciclo que o resultado final disso tudo é o que a gente chama de floresta fantasma. É uma floresta defaunada. É uma floresta que tem suas árvores, que tem a sua estética ambiental, só que não tem os animais que deveriam estar ali. Então é uma floresta fadada a sucumbir. E essa complexidade toda é o eu estou tentando agora defender, se tudo der certo, esse mês de junho [risos]. E aí a gente vai poder discutir melhor esse assunto.

Carolina Areal - Gabriel, eu já ia perguntar para você, se você poderia apresentar algumas observações que você conseguiu, algumas conclusões que você chegou com o seu trabalho. Mas, como você ainda vai defender, eu acredito que não tem como dar essa escolhe para gente, né?

Gabriel Aguiar - [risos] É, seria um spoiler. Mas eu posso adiantar que o cenário de defaunação é bem evidente. A gente tá monitorando os impactos tanto em em mamíferos silvestres, com 11 espécies, quanto em répteis e anfíbios. E o impacto está bastante evidente nos três grupos. Então a gente teve uma redução massiva de indivíduos e de espécies, tanto de mamíferos, quanto de répteis, quanto de anfíbios. E aí depois a gente vai ter isso em números para mostrar.

Carolina Areal - Mas no caso, Gabriel, qual seria a solução? Se é que você consegue responder isso para mim agora. Porque pode parecer, a gente aqui conversando, que as pessoas possam achar que a culpa é dos animais, que é culpa dos gatos, por exemplo, que são abandonados. Mas eu acredito que seja do instinto natural desses bichos. Então a culpa seria, realmente, do homem que abandona esses animais nesses lugares. Qual seria a solução para a gente poder trabalhar essa questão de forma mais efetiva?

Gabriel Aguiar -  Com certeza, Carolina! A gente não pode jamais culpar os gatos por isso. Sobretudo quando a gente fala de natureza, esses conceitos de culpa, de moral, não existem. A natureza ela é amoral e ela funciona segundo mecanismos adaptativos e evolutivos. Então o gato não tem culpa nenhuma! [risos] O único animal nesse contexto que pode ser culpabilizado é o ser humano. O ser humano que trouxe esses animais. O ser humano que reproduz esses animais em casa. E o ser humano que egoisticamente abandona ilegalmente esses animais em áreas protegidas. Então, a culpa do ser humano precisa ser transformada em responsabilidade para transformar essa situação. Isso que você colocou é o centro da questão! E sim, um dos assuntos que eu mais tenho interesse é na solução dos problemas. E, essa minha pesquisa, eu espero que haja uma aplicação direta logo em seguida para solucionar essa questão ou mitigar da melhor forma possível. E aí tratando de potenciais soluções, Carolina, o que tem que ser feito quando a gente fala de manejo de animais, sobretudo de carnívoros, é principalmente o manejo de recursos, ou seja, de ração. Por que a gente tem um problema muito grande que é, às vezes,  a falta de compreensão do ser humano de como funciona aquele animais. Por nós termos gatos, eu crio dois gatos e eu tenho maior afeição por eles, passam o dia aqui colados em mim, a gente acaba achando que todos os gatos precisam do ser humano. Só que os gatos, ao contrário dos cachorros, eles são animais domesticados, porém que com todos os seus instintos silvestres selvagens a pleno vapor. Eles são completamente auto suficientes se não estiverem em excedente populacional. Então, por exemplo, Carolina, eu faço trabalho na Caatinga, em Quixadá ou em outras áreas, que eu entro na mata 60 ou 80 quilômetros e lá no meio eu boto uma câmera filmando e eu vejo gatos domésticos circulando sem nenhum contato com o ser humano. Então, são animais que sobrevivem perfeitamente sem assistência humana.

Mas o que é que acontece: quando a gente começa a colocar em locais específicos da conservação, como é uma unidade de conservação, grande quantidade de ração. Aquelas pessoas que criam gato, que são aquelas que abandonam, porque quem abandona é porque cria e a pessoa que vai abandonar ela sabe que aquilo é errado, mas ela tenta aliviar a culpa dela. Então ela vai buscar locais que ela acha que o gato vai ser cuidado.  E aí a tendência é ela colocar nesses locais em que há estrutura pública ou deposição de ração, que geralmente é uma unidade de conservação. E aí é um problema, porque é o último um por cento de cobertura vegetal que a gente tem na cidade. E isso é responsabilidade do Poder Público. Então, para solucionar essa questão, a gente precisa trabalhar em parceria com as protetoras dos gatos, com as ONGs de proteção animal, para que a gente faça o manejo gradual, visando reduzir gradativamente a disposição de ração. Além de planos de castração e adoção dos gatos que já estão lá. Então aqueles gatos, uma vez castrados, precisam ser encaminhados para a adoção. Eles não podem ser castrados e abandonados novamente no local. E a ração depositada precisa ser muito bem disciplinada, visando a sua redução gradual. De forma que, com a redução populacional dos gatos, a gente tem uma situação que outros gatos que, porventura, venham a ser abandonados no local não encontrem aquela grande quantidade de ração. Porque mesmo sem a ração, se forem poucos gatos, eles se viram ali dentro do ecossistema. Só que, se for colocada muita ração, a população ela chega a ficar cem vezes maior, por conta do excedente de nutrientes, de calorias. Então, é mais ou menos essa situação. Qualquer animal que você der um excedente alimentar, pode ser raposa, guaxinim, tatu, soin, qualquer um, vai entrar num bum populacional e vai se tornar insustentável. No caso dos gatos, que é um predador de topo, é esperado que tenha um gato a cada 50 hectares, que é como seria sustentável na Ásia, por exemplo. Quando a gente coloca alimento em excesso, aí você vai ter os gatos chegando a 140 gatos em 50, em 80 hectares, como é o caso do Cocó. A gente precisa deixar que a própria natureza tome conta da situação, buscando a sustentabilidade que é intrínseca dela. Com o mínimo de intervenção possível.

Carolina Areal - Por isso que é sempre bom, sabe Gabriel, a gente poder conversar.  Porque a gente acaba descobrindo e conhecendo tanta coisa que a gente nem imagina. Então acho que essa tua pesquisa, ela vem realmente acrescentar muito nesse cenário aqui de Fortaleza, que sofre muito com o abandono desses animais e que, às vezes, [a gente] não tem nem a dimensão. Além do maus-tratos a esses animais, têm a questão também meio ambiente que está totalmente relacionado.

Gabriel Aguiar - Com certeza! É tudo integrado.

Carolina Areal - Além da tua  pesquisa de mestrado. Aproveito também esse bate-papo pra entrar em outra questão. Recentemente teve uma repercussão, que poderia ter até uma repercussão maior. No dia 22 de maio, se eu não me engano, o Instituto Verdeluz, da qual você faz parte, postou nas redes sociais também vídeos denunciando a prática ilegal de offroad nas praias da Sabiaguaba. Acho que você e outros companheiros seus também foram ameaçados nas redes sociais, inclusive ameaçadas de morte. Eu queria muito que você pudesse explicar para gente o porquê que essa prática ilegal nas dunas da Sabiaguaba. Por que que essas práticas de offroad, esses carros 4x4, eles são ilegais nas dunas da Sabiaguaba e quais os impactos dessa atividade automobilística, nem sei se se chama assim, mas dessa prática com os carros naquela região da Sabiaguaba para aquele ecossistema.

Gabriel Aguiar -  Então, realmente, isso foi um fato que ocorreu. Infelizmente dentro das diversas pautas e de engajamento socioambiental, social, esse tipo de represália é comum de ocorrer quando alguém trava alguma dessas batalhas pelo comum. Eu não fui o primeiro  a ser ameaçado e nem ser o último. Sobretudo nessa questão ambiental e, sobretudo, no Brasil. Então, a gente tenta tomar as providências porque é algo que diz respeito a todo um grupo de pessoas e não apenas a uma pessoa que foi ameaçada.

Então, em relação às práticas off-road, o que acontece: o off-road é essa prática de veículos fora da estrada. Que as pessoas gostam de ir na beira da praia, em cima de dunas, em trilhas. É uma prática que se for bem feito pode ser bacana. Se for regulamentada, se for bem feita por pessoas conscientes. Mas se ela não for gerida corretamente, ela acarreta graves impactos a toda a comunidade, a toda a ecologia. Focando aqui só nos impactos ambientais diretos e ecológicos, eu posso citar, Carolina, que todo o nosso litoral é uma área de descanso de aves migratórias. São aves neárticas, ou seja, que elas vêm do hemisfério norte do planeta e voam até aqui, sobretudo no inverno de lá, para se reproduzir, para descansar, colocar seus ovos. Elas chegam aqui, Carolina, pesando mais ou menos metade do peso padrão delas. Porque a viagem é exaustiva. Você imagina você voar do norte do Canadá até a praia da Sabiaguaba para poder descansar. Então elas perdem metade do peso delas e chegam aqui no limite. Quando elas chegam aqui elas precisam descansar, elas precisam ter alimento, tranquilidade para ganhar o peso e depois se reproduzir. E a reprodução delas, Carolina, é no solo. Elas vão colocar os ovos no solo, muitas delas. Então, o que acontece? Quando elas chegam aqui, nesse cenário de debilitação, elas encontram no último local da cidade que elas podiam estar tranquilas e se produzir, que é a faixa de praia da Sabiaguaba, elas encontram dezenas de carros 4x4 fazendo muito barulho, andando em alta velocidade e circulando, inclusive nas lagoas. Em cima das lagoas interdunares, nos locais que elas teriam para habitar. E aí por vezes, até como a gente já flagrou, passando por cima de ninhos, passando por cima de ovos, de filhotes. Então, é uma situação bastante desagradável que compromete todo o ciclo desses animais.

Por isso é que seria importante essa regulamentação. Em unidades de conservação, que é o caso da Sabiaguaba, obviamente é proibido por inteiro. Você não pode, numa área de proteção integral, ter práticas esportivas desse tipo. Sobretudo, na Sabiaguaba, além de ter um ecossistema riquíssimo, um tesouro para Fortaleza. Alí é, também, um sítio arqueológico tombado pelo Iphan. Alí gente tem Artefatos de 4.600 anos de idade. Vasos de cerâmica, material processado, fragmentos de materiais dessa época., ou seja, 1600 a.c. As tribos que viviam ali deixaram seus artefatos e eles foram cobertos, foram protegidos pelas Dunas. Quando os 4x4 circulam nessa área, eles quebram, eles se fragmentam e eles vão descaracterizando todo esse sítio arqueológico.

Então, por essas questões, pela lei n° 9.985 de 2000, que institui as unidades de conservação, pela lei n° 9.605 de 1998, que institui os crimes ambientais, a gente denunciou. Nós já denunciamos, Carolina, já tem quase dois anos que a gente vem denunciando no Ministério Público, para a própria polícia, para os órgãos competentes de fiscalização. E aí nessa última instância, já que a prática continuou, a gente denunciou nas redes sociais. Aí foi quando veio a represália. Então, o contexto é mais ou menos esse. É um dos vários contextos de irregularidades que a gente tem nas unidades de conservação, sobretudo municipais. A gente precisa, como sociedade, está sempre atento. Vale destacar, Carolina, que esse papel da sociedade de fiscalizar, e denunciar, de cuidar da própria natureza que tem no nosso entorno, ele é previsto pela própria constituição. Não é uma coisa, assim, que alguém inventou. No próprio artigo 225 da Constituição, eles colocam que se impõe à coletividade o dever de defender e proteger a natureza. Garantindo a sustentabilidade para as futuras gerações. Então, isso é tanto direito nosso, de cuidar da natureza, que é um bem de todo mundo, quanto um dever também de todo cidadão, de toda cidadão, que é cuidar daquilo que é dele, é dos outros e é dos que virão. Então, tudo isso está conectado. Tá previsto na nossa Constituição. E quanto mais gente souber disso melhor. Por que a gente vai ter a segurança de que, o que é um patrimônio de todo mundo, está sendo respeitado.

Carolina Areal -  Total Gabriel! Acho que é importante e a gente enquanto Rádio Pública também, a Rádio Universitária, a gente sempre tenta que promover esses debates. Porque, de fato, é importante a gente refletir sobre o nosso papel, o que a gente pode fazer. Você falou sobre essa questão da Sabiaguaba, essa questão mais atual das denúncias, mas que você já vem denunciando há muitos anos essa prática de carros 4x4 nas dunas da Sabiaguaba. Mas, por exemplo, eu vi nos vídeos seus, nas reportagens antigas, eu acho que elas datam ali também 2018, sobre na época da construção da CE 010, que dividiu a as dunas da Sabiaguaba ao meio. Eu lembro muito de você comentando nessas reportagens mais antigas denunciando o fato de terem colocado palhas por cima das dunas, o fato de quererem cercar essa parte das dunas, sabe? Essa ideia que, às vezes, muitos veículos de comunicação, às vezes a gente reproduz esse discurso de que a areia está invadindo o asfalto. Quando você mesmo nessas reportagens deixou muito claro que é o contrário: são as pistas, é o homem que acaba invadindo o espaço que é meio ambiente. Por isso surgiu um questionamento: eu queria saber se há, realmente, um descaso da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente com essa Unidade de Conservação de Proteção Integral, que é a Sabiaguaba. Existe de fato um descaso? Por que que tantas coisas acontecem? E não é só lá na Sabiaguaba, na verdade acontece com outras áreas também de preservação. Por que que tudo isso acontece? Parece que as pessoas continuam cegas para essas coisas todas que ocorrem.

Gabriel Aguiar - Então, realmente, a situação é bastante crítica, na Sabiaguaba e nas unidades de conservação municipais como um todo. A gente tem, aqui em Fortaleza, unidades de conservação estaduais e municipais. As Unidades de Conservação estaduais vinham de um cenário de abandono, mas recentemente isso tem melhorado. A gente tem um técnico crescente na Secretaria Estadual do Meio Ambiente. A gente percebe uma preocupação crescente. Eu diria, Carolina, há um amadurecimento gradual desses órgãos,  já que essa preocupação ambiental é algo um tanto quanto novo. O movimento ambiental é um tanto quanto novo. Há algumas décadas não se falava tanto disso, foi algo que começou alí no Woodstock mais ou menos.

Mas no município, Carolina, infelizmente, eu não vejo esse amadurecimento. Eu vejo na Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente, um descaso integral com as Unidades de Conservação e um completo abandono com a Unidade de Conservação da Sabiaguaba. O Instituto Verdeluz, que é o instituto que eu faço parte, ele tem cadeira no conselho gestor da Sabiaguaba. Então a gente tem representação lá e eu acompanho de perto as reuniões. A gente está há anos pressionando para que seja seguido o plano de manejo, que é o documento de maior relevância para a gestão da área, e ele é completamente negligenciado. Então a gente tem dezenas de metas. O plano já tem mais de 10 anos, a gente tem dezenas de metas a serem cumpridas e praticamente nenhuma foi iniciada. Então há realmente o abandono, há um descaso com a unidade. E isso a gente cobra sempre da Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente. É um problema muito sério. Essa questão que você colocou, da pista, é exatamente isso. A gente já destruiu, Carolina, 83% da cobertura de dunas original da cidade. Então a gente tem só 17% do que já houve um dia. A área da Sabiaguaba é o último campo de dunas móveis da cidade de Fortaleza. Ou seja, aquelas dunas que, com tempo vão caminhando. Elas estão há mais de 5.000 anos!  E aí o ser humano chega no percurso que a duna vai correr e constrói uma rodovia. E aí a duna, é claro, em pouco tempo começa a cobrir a rodovia. E aí o ser humano fala que a duna está invadindo a pista, só que é o caminho que a duna está fazendo há 5000 anos. Então a pista está invadindo a duna, como você colocou,  e isso é bem flagrante. Quando vão fazer um projeto desses, já era completamente sabido, consciente, de que a duna iria fazer esse percurso. Então, já se faz o projeto considerando que a natureza deve se dobrar as vontades, os caprichos humanos de tráfego. Então, é uma situação muito séria que ficou mais uma vez para a sociedade civil resolver. Porque nós que estamos tendo que fiscalizar. Nós estamos denunciando crimes, como é o caso das palhas, que você colocou. Aqui o Departamento Estadual de Rodovias foi multado em 20 mil reais pelo Ibama. E tantas outras irregularidades que foram causadas pelo Poder Público e agora ficamos nós voluntariamente [risos] tendo que ter esse desgaste. Também, Carolina, a gente tá tentando propor soluções para a área, para essa passagem. Porque ali não há nenhum interesse de que se continue o problema. E também a gente sabe que medidas paliativas não resolvem. Então, todo o movimento ambiental tá trabalhando com pesquisadores, com técnicos, com cientistas, para resolver essa questão. A gente quer que fique bem para natureza, para a duna, para a Unidade de Conservação e para os órgãos administrativos que causaram o problema. No fim, a gente tudo bem e puxa para gente essa responsabilidade.

Carolina Areal -  Se eu não me engano, Gabriel, vocês tem até um instagram, acho que é Fortaleza Pelas Dunas (@fortalezapelasdunas). Eu vi lá. Você, realmente, têm atualizado esse instagram para trazer um pouco sobres essas reuniões, sobre essas tentativas, realmente, de se manterem ativos na preservação das dunas aqui de Fortaleza. Então, se eu não me engano, é esse mesmo o instagram.

Gabriel Aguiar -  É isso mesmo, Carolina! Ainda bem que você falou porque, com certeza, já iam puxar minha orelha porque que eu esqueço muito de falar.

[Os dois riem]

Gabriel Aguiar - Eu esqueço muito de falar do nome do movimento. Era a primeira coisa que era para eu ter falado. É Fortaleza pelas Dunas, no Instagram. O Fortaleza pelas Dunas, Carolina, é uma coalizão de movimentos ambientais que já existiam. Então, ele é coordenado pelo Greenpeace, pelo Instituto Verdeluz, pelo SOS Cocó, que tá fazendo 40 anos de luta pelo Parque do Cocó.

Carolina Areal - Uau!

Gabriel Aguiar - É o primeiro movimento ambiental construído aqui em Fortaleza, depois da Socema. E ele integra esses grupos todos, integram e criam o Fortaleza pelas Dunas, juntamente com o Movimento Pró-Árvore, também. Esse movimento, ele visa proteger as últimas dunas de Fortaleza. Tanto as dunas da Sabiaguaba, o parque e a APA, quanto as dunas do Mucuripe, da Praia do Futuro, da Cidade 2000 e as dunas do Cocó. Então, todo esse cordão de dunas, com florestas, com lagoas, com toda essa rica fauna e flora, a gente tenta através desses movimentos garantir a preservação.

Carolina Areal -  A gente tá conversando desde o início sobre a importância de se preservar o meio ambiente, de você lutar enquanto população, fazer a pressão popular, lutar pelos nossos direitos, os direitos do meio ambiente, por essa casa que é o meio ambiente. A gente comentou agora, também, sobre essas ameaças que você e tantos outros ativistas recebem todos os dias por protegerem algo que deveria ser unanimidade. Que é a gente preservar o meio ambiente, preservar os nossos recursos, que é a respeitar quem já estava aqui há muito tempo. E eu sou uma pessoa pouco xereta. Eu começo lá a pesquisar um bocado de coisa antes de fazer as entrevistas. E eu não pude deixar de me deparar com um monte de mensagens, muitas vezes ameaçadoras, desestimuladoras. Como é que vocês encontram forças para continuar lutando, para continuar se manifestando, reivindicando, mesmo em um cenário que muitas vezes age desfavorável a vocês? Eu queria finalizar com essa mensagem, para que a gente possa respeitar, ainda mais, a atuação de vocês no dia a dia.

Gabriel Aguiar -  Realmente, o que você colocou é algo muito presente. A gente sofre muita resposta negativa, muitos ataques. Independente do que a gente faça, eu acho que a questão ambiental e outras também, sempre vai ter gente atacando. A gente faz limpeza de Unidade de Conservação, a gente tirou mais de duas toneladas de lixo. E durante as limpezas passam carros, baixam o vidro, xingam a gente, jogam o lixo pela janela do carro na gente, quando a gente está limpando. Esse tipo de coisa ocorre e quando a gente denuncia ilegalidade ocorrem muito mais. Porque quase sempre, também, as ilegalidades ocorrem por interesses, muitas vezes, económicos. E quando a gente denuncia para proteger o que é de todos, que é o meio ambiente, esses interesses privados são postos em cheque. Então, essas pessoas que estavam lucrando ou se beneficiando com o que é de todo mundo, muitas vezes vão destilar raiva contra os movimentos ambientais, contra pessoas. Isso ocorre bastante. Mas a força, Carolina, eu diria que a gente tira do outro lado. Eu vou aceitar só um exemplo aqui: essa questão do off-roads, que uma questão bastante estressante, bastante triste, também. Logo que foi exposto às ameaças, os ataques, eu recebi muita mensagem, inclusive de pessoas, do [movimento] off-road. Me apoiando, desejando força, dizendo que discorda com tudo que estavam fazendo. E os próprios líderes do movimento off-road criaram um movimento contra a circulação de veículos na Sabiaguaba, que é Off-Sabiaguaba, que eles fizeram. Então, a gente vê que em todos os lugares vão ter pessoas dispostas a se dedicarem, a colocarem energia para construir esse respeito maior, esse cuidado com a nossa casa, como você colocou.  Então, as pessoas que se opõem, as pessoas que atacam, as pessoas que criticam, muitas vezes é porque foram criadas ou porque cresceram numa realidade que ainda trata a natureza como infinita. Que ainda trata a natureza como se houvesse uma lixeira gigante em que você pudesse colocar infinitamente o que a gente produz, de rejeito. Então essas pessoas precisam de educação. Essas pessoas precisam de formação e de sensibilidade. Claro que, quando chega num nível de um ataque, a gente precisa levar para uma esfera judicial. Mas quando você percebe que é desinformação, que a inocência, aí você precisa ter calma, tranquilidade, respirar também para manter nossa saúde. E tratar isso de forma sensível, integrado, e buscando sempre o melhor para todo mundo. Porque é disso que se trata toda nossa luta.

Carolina Areal -  Gabriel, eu queria muito agradecer por esse bate papo, tá certo? Vida longa o todo trabalho que você realiza e a de tantos outros ativistas e ambientalistas. Não só aqui na nossa cidade, Fortaleza, mas todo o Brasil e em todo o mundo. A gente precisa cada vez mais olhar mesmo com mais carinho para o meio ambiente. Então, eu te agradeço demais por você ter encontrado um tempo, por que você é uma pessoa requisitada.

[Os dois riem]

Carolina Areal - Pra poder conversar aqui com a gente, tá? Muito obrigada!

Gabriel Aguiar - Muito obrigado! Eu que agradeço. Um abraço para todo mundo!

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