13/08/18

Comunidade LGBTI+ sofre restrições para doar sangue

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) cerca de 19 milhões de litros de sangue não são coletados por ano devido a esse tipo de restrição (Foto: Agência Brasil)

Na primeira parte deste especial dedicado à doação de sangue, foram apresentados aspectos gerais sobre o tema, como quem pode ser doador e alguns dos medos que impedem as pessoas de doar. Agora, outro tipo de impedimento será abordado nesta matéria.

A meta da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de que 3% da população de cada país doe sangue, de forma a garantir o nível de segurança dos pacientes que precisem de transfusões. Segundo o Ministério da Saúde, atualmente apenas 1,6% da população brasileira é doadora, quantidade ainda bem distante da considerada ideal.

Uma das maiores dificuldades em torno dessa questão é o fato de que as doações dependem exclusivamente de voluntários, que nem sempre doam de maneira regular. A coordenadora de captação de doadores do Centro de Hematologia e Hemoterapia do Ceará (Hemoce), Nágila Lima, explica que são necessárias doações durante todo o ano, não apenas em períodos de campanha, feitas nas férias e em datas comemorativas. “Nós precisamos de 250 doações diárias para atender todos os leitos da cidade de Fortaleza, mas tem períodos em que elas diminuem, então, a gente nunca tem um número fixo todos os dias”, explica.

No entanto, não são todos que podem doar. A portaria 158 do Ministério da Saúde, estabelecida em 2016, constitui algumas diretrizes em torno da doação, que podem barrar o doador de forma permanente ou temporária. Entre os motivos dessas restrições estão algumas doenças, como Doença de Chagas e Infecções Sexualmente Transmissíveis; gravidez; piercings ou tatuagens feitas nos últimos 12 meses e comportamentos considerados de risco, como ter relações sexuais com parceiros desconhecidos ou fazer compartilhamento de seringas ou agulhas.

Como a comunidade LGBTI+ é afetada 

Uma das restrições presente na portaria, no artigo 64, é motivo de vários debates acerca do tema, pois estabelece que homens que tiveram relações sexuais com outros homens ficam impedidos de doar sangue por 12 meses, o que é visto por muitos como uma forma de discriminação.

É o caso do publicitário João (N.F.)*, de 33 anos, que tentou realizar uma doação junto com uma amiga há 11 anos. Ele afirma que só havia tido relações sexuais com um homem no ano anterior, assim como sua amiga. No entanto, ele foi impedido de realizar a doação, enquanto a amiga conseguiu doar. “No começo eu achei que tinha sido pela falta do uso da camisinha na prática do sexo oral, mas quando eu saí fiquei esperando a minha amiga, que conseguiu doar sangue. Ela me contou que tinha feito sexo com o namorado dela, mas não tinham perguntado se ela fez uso da camisinha. Aí eu percebi que tinha um problema, e depois fui conversando com uns amigos que também tentaram doar e não conseguiram e fui percebendo que o problema é o homem fazer sexo com outro homem e não o uso ou não da camisinha”, relata João.

Em nota enviada por email à Rádio Universitária, no dia 20 de julho, o Ministério da Saúde se manifestou sobre a restrição. “Essa medida atende recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e está fundamentada em dados epidemiológicos presentes na literatura médica e científica nacional e internacional, não tendo relação com preconceito ou orientação sexual do candidato”, justificou a entidade.

Uma única doação pode salvar até quatro vidas, pois o material coletado é separado em diferentes componentes: concentrado de hemácias (glóbulos vermelhos), concentrado de plaquetas, plasma e crioprecipitado que podem ser utilizados em diversas situações clínicas (Foto: Reprodução/Internet)

Todo o sangue colhido é testado para doenças como hepatite B, hepatite C, HIV, HTLV, sífilis e doença de Chagas (Foto: Reprodução/Internet)

Existem vários movimentos que afirmam que esta portaria reforça a ideia de grupo de risco e, com isso, promove o estigma em torno da população LGBTI+. Além disso, recentemente a OMS reconheceu que seu guia de práticas sobre doação de sangue para homens que fazem sexo com outros homens está desatualizado, por se tratar de diretrizes elaboradas durante um período em que as pesquisas sobre formas seguras de se fazer transfusões de sangue ainda estavam evoluindo.

Prova do estigma existente em relação aos homossexuais é o caso da jornalista Clarice (N.F.)*, de 28 anos. Ela tentou realizar uma doação há cinco anos, junto com sua namorada. A jornalista, no entanto, não teve permissão para doar, apesar de preencher todos os requisitos para ser um doador. “Na época, depois de conferir meu peso, ela me levou para outra sala para fazer as perguntas da triagem. No momento em que ela me perguntou se eu tinha um parceiro fixo, eu disse que tinha uma parceira. Logo em seguida, ela falou que eu não poderia doar, por não ter o perfil. Eu ainda tentei discutir, disse que tinha um relacionamento estável há três anos, mas ela ainda não me permitiu fazer a doação e a minha namorada também não conseguiu. Eu passei anos acreditando que homossexuais não podiam doar sangue”, relata Clarice.

Essa restrição é necessária?

Com a tecnologia existente no Brasil hoje, é possível diminuir a janela imunológica, período de tempo necessário para os exames identificarem quando o sangue está contaminado. Dessa forma, vírus causadores de doenças como a aids e a hepatite podem ser identificados no organismo de forma bem mais rápida.

É o que explicou o infectologista e professor da Faculdade de Medicina da UFC, Roberto da Justa, em entrevista à Rádio Universitária em 2016. “A transfusão de sangue no Brasil hoje é um procedimento muito seguro e o país desde 2010 adota técnicas que reduzem essa janela imunológica tanto para o HIV, que reduz de 21 dias para 10 dias, como também para a hepatite C, que reduziu de 70 dias para 20 dias, através de técnicas de biologia molecular. Então a gente tem um dos sangues mais seguros do mundo, porque os bancos de sangue do nosso país adotam métodos e técnicas extremamente avançados”, afirmou Roberto da Justa.

Além das altas tecnologias envolvidas nesse processo, que possibilitam a diminuição da janela imunológica, a noção de que a população LGBTI+ é um grupo de risco também vem sendo questionada. Segundo o Boletim Epidemiológico de 2017, publicado pela Secretaria de Vigilância em Saúde (Anvisa), bissexuais e homossexuais representam 47,3% dos homens contaminadas com o HIV, enquanto heterossexuais são cerca de 49%.

Mapa mostra como cada país se comporta em relação à doação de sangue por homossexuais (Ilustração: Revista Superinteressante/Editora Abril)

Com base em dados como estes, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543 começou a ser julgada em outubro de 2017 no plenário do Supremo. A ação tem o objetivo de mudar as normas sobre a doação de sangue, fazendo com que o Brasil passe a concordar com países como Argentina, Chile, Portugal e Itália, que adotam regras semelhantes para todos os doadores, independente da orientação sexual. À época, o ministro Edson Fachin, relator do caso, considerou a restrição discriminatória e os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux votaram a favor da ADI. No entanto, o ministro Gilmar Mendes pediu vista para a ação e não há previsão de retorno do julgamento.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) existem 10,5 milhões de homens bissexuais e homossexuais no Brasil. Além disso, levando em conta que um homem pode doar quatro vezes em um ano, esta norma da Portaria 158 acaba desperdiçando cerca de 19 milhões de litros de sangue por ano.

Sendo assim, a mudança dessas normas, além de beneficiar a comunidade LGBTI+, com a quebra de um estigma existente há décadas, também aumentaria a captação e o estoque de bancos de sangue em todo o país.

*N.F.: Nome Fictício

Matéria feita por Maryana Lopes com orientação de Natália Maia e Carolina Areal

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