03/11/20

A relação entre racismo e meio ambiente

O termo racismo ambiental surgiu nos anos 80 e designa situações em que populações já vulneráveis são as mais atingidas pelos malefícios da degradação ambiental (Foto: Sumaia Villela/Agência Brasil)

Em fevereiro de 2019, em Fortaleza, o alto nível de chuvas transbordou a barragem do Rio Cocó, alagando dezenas de residências do Conjunto Palmeiras e bairros vizinhos. Três anos antes, também na capital cearense, segundo relatos de moradores, pressionada pela população, a Regional VI revitalizou a Lagoa da Pedra, no Jangurussu, mas no processo expulsou pessoas da área, cortando seus laços comunitários. Apesar de diferentes e de terem ocorrido em momentos distintos, estas situações são exemplos de como as consequências negativas do desenvolvimento urbano recaem sobre uma população que já se encontra prejudicada por desigualdades sociais.

Desde a década de 1980, esse fenômeno tem nome: racismo ambiental. O termo foi criado nos Estados Unidos por Benjamin Franklin Chavis Jr, ativista que, junto a outros militantes, percebeu como os territórios negros do país eram os mais afetados pelo depósito de resíduos tóxicos. Em outras palavras, o racismo ambiental ocorreria quando grupos raciais e étnicos afetados por dificuldades socioeconômicas também são vitimizados pela degradação ambiental. “Ou seja, os territórios onde tem mais degradação ambiental são os territórios ocupados por essas populações. Se observarmos, por exemplo, a gente não vai ter comunidades brancas removidas, vai ter uma imensa maioria de população negra ou de povos originários que são imediata e gravemente afetados e afetadas pelo uso predatório dos ecossistemas e da biodiversidade”, afirma Cristiane Faustino, assistente social e integrante do Instituto Terramar e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Manifestantes em frente à sede da Regional IV buscando melhores condições de vida para moradores do bairro Serrinha (Foto: Elias Brás e Thiago Campos)

Manifestantes em frente à sede da Regional IV buscando melhores condições de vida para moradores do bairro Serrinha (Foto: Elias Brás e Thiago Campos)

O conceito de racismo ambiental chegou no Brasil no começo dos anos 2000 e se adequou à realidade brasileira, passando a ser referenciado como injustiça ambiental e a destacar não somente a população negra, como era nos Estados Unidos, mas quaisquer grupos sociais afetados pelo desgaste do meio ambiente. Segundo Cristiane Faustino, essa mudança foi conduzida por ambientalistas e outros ativistas brasileiros que desconsideraram o racismo como principal causa da desigualdade do país. “A gente deve considerar todas as desigualdades como sendo influenciadoras do debate ambiental, mas a questão racial é um marcador muito importante na história das desigualdades no Brasil, [que] vão ter uma marca muito forte do racismo”, explica.

Para Luana Viana, professora do Curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da do Campus de Crateús da Universidade Federal do Ceará (UFC), o racismo ambiental está inserido nas diferentes formas de injustiça ambiental, o que, por sua vez, faz parte de um fenômeno maior, a injustiça social. “Existe uma parcela da população que sente os impactos ambientais de forma exacerbada. E há ainda aqueles que historicamente sofrem o racismo e por morarem, em sua maioria, em locais vulneráveis, recebe-se somente o ônus do desenvolvimento”, relata a pesquisadora.

Fortaleza pode ser uma cidade desigual de várias formas. É o que diz a assistente social Cristiane Faustino. Ela cita como exemplo o Conselho Estadual de Meio Ambiente, formado majoritariamente por pessoas brancas. Ela menciona ainda as obras realizadas na capital antes e durante a Copa do Mundo de 2014 como exemplos de rejeição dos direitos das populações periféricas. “Você não viu comunidades brancas profunda e negativamente afetadas pelas obras da Copa. Muito pelo contrário, os interesses dos ricos, os interesses dos mais poderosos, foi que predominou”, denuncia Cristiane.

Pandemia e injustiça

O educador social e ambientalista Cleylson Almeida tem uma longa trajetória de combate à injustiça ambiental. Enquanto representante do movimento Círculos Populares e presidente da Associação de Moradores do Bairro da Serrinha (Amorbase), ele se articulou a outros moradores e militantes em muitos casos de violação de direitos da população mais pobre e vulnerável de Fortaleza, inclusive durante a pandemia do novo coronavírus. Além de um ato-denúncia cobrando do Governo Estadual mais hospitais de campanha, as organizações também realizaram frentes de solidariedade para os moradores do Jangurussu e da Serrinha.

Segundo pesquisas, o racismo ambiental pode ser percebido, na pandemia, na alta taxa de mortalidade em regiões periféricas e entre os negros (Foto: Pedro Conforte/Plantão Enfoco)

Segundo pesquisas, o racismo ambiental pode ser percebido, na pandemia, na alta taxa de mortalidade em regiões periféricas e entre os negros (Foto: Pedro Conforte/Plantão Enfoco)

Segundo Cleylson, o racismo ambiental pode ser visto na pandemia através da alta taxa de mortalidade em regiões periféricas, onde a população contraiu o vírus, mas não conseguiu ser tratada da forma necessária. “O Meireles teve muitos casos, mas pouquíssimos chegaram a óbito. Mas as catadoras de material reciclável da Serrinha, será que têm a mesma condição de passar o dia em casa, com a geladeira cheia, as contas em dia?”, provoca o educador. De acordo com uma análise publicada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a população negra e periférica do Brasil tornou-se mais vulnerável na pandemia devido ao acesso desigual à saúde, ao saneamento e ao trabalho. Acompanhando os boletins epidemiológicos, a pesquisa percebeu que a população negra passou a representar mais da metade dos óbitos, evidenciando “a dificuldade de acesso dessa população aos serviços de saúde, principalmente os de maior complexidade, como os leitos de cuidados intensivos”.

Apesar de atualmente não haver nenhuma proposta legislativa que discorra sobre a injustiça ambiental, Cleylson, Cristiane e Luana acreditam que esse fenômeno deve ser cada vez mais debatido pela sociedade, da academia às reuniões dos movimentos sociais. “A gente precisa promover mais esse encontro e esse debate coletivo. Precisaria que a gente fizesse uma liga maior entre todas essas dimensões e fortalecesse o tema no âmbito do movimento social e no âmbito da sociedade civil, porque as conquistas de legislação, as conquistas de direitos estão no nosso país sempre vinculadas à capacidade de organização de luta”, conclui Cristiane.

Reportagem de Mateus Brisa com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira

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