21/05/20

Música Lo-fi: Entrevista com Marcelo Bergamin Conter

Além de músico, Marcelo Bergamin Conter é pesquisador e professor de Produção Fonográfica do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (Foto: Arquivo Pessoal)

[Atualizado em 22 de maio de 2020, às 13h00] Anteriormente, a entrevista afirmava que Marcelo Bergamin Conter havia publicado dois livros sobre música lo-fi. Eram eles: "Lo-fi: música pop em baixa definição" e "A(na)rqueologias das Mídias". Neste último, uma coletânea de textos variados, o pesquisador escreveu um capítulo, mas que não trata sobre o assunto. O nome do segundo livro do autor sobre música lo-fi é "Imagem-música em vídeos para a web". A entrevista também trazia um erro de digitação. Onde se lia "introdução versus refrão", o correto seria "introdução, verso, refrão".

Um sucesso recente, o hip hop lo-fi se popularizou através de transmissões ao vivo de longa duração realizadas no YouTube. Os vídeos contam com elementos musicais do hip hop aliados a uma estética indutora de melancolia e tranquilidade. Seja para ajudar na concentração ou a dormir, o hip hop lo-fi tem garantido seu espaço na Internet. Isso levou, inclusive, produtores brasileiros a remixarem canções famosas do país com os fundamentos do lo-fi.

Para entender melhor sobre a técnica lo-fi, a Rádio Universitária FM entrevistou Marcelo Bergamin Conter, professor de Produção Fonográfica do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). Ele se aproximou do lo-fi no início da década de 2000 e, desde então, incorporou a técnica à sua vida pessoal, seu trabalho e sua pesquisa acadêmica. Marcelo abordou a produção amadora do lo-fi em seu mestrado e doutorado, ambos realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Confira como foi a conversa:

Marcelo tem dois livros publicados que abordam o lo-fi (Foto: Arquivo Pessoal)

Marcelo tem dois livros publicados que abordam o lo-fi (Foto: Arquivo Pessoal)

Rádio Universitária FM: O que é o lo-fi?
Marcelo Bergamin Conter: Lo-fi é uma abreviação de low fidelity, em inglês; em português, ele significa baixa fidelidade. E se a gente pensar o que significa baixa fidelidade, a gente vai pensar então sobre equipamentos de captação e reprodução de áudio que não conseguem reproduzir com uma qualidade muito boa o som original, que foi capturado. Então a gente poderia pensar aqui, por exemplo, num disco de vinil que tá gasto, ou numa fita cassete que tá mofando, ou a gente pode pensar em equipamentos baratos, microfones de baixa qualidade. Mas pra poder dizer que algo é lo-fi, preciso ter algo que seja hi-fi, de alta fidelidade, pra que a gente possa comparar. Se a gente voltar pro início do século passado, lá por 1926, e escutar as gravações que eram feitas na época, os discos do Enrico Caruso ou de outros artistas desse período, aquela lá era a melhor qualidade que podia ter na época, mas hoje elas parecem ser de baixíssima qualidade. Então, a fidelidade é o quão próximo tu consegue chegar, seria essa ideia, o quão próximo tu consegue chegar da sonoridade original de um evento concreto, o quão próximo eu consigo chegar de um show ao vivo numa gravação. Obviamente que isso é um falso problema, não tem como a gente chegar numa reprodução que seja idêntica a uma performance ao vivo, mas é uma forma que a indústria desenvolveu ali pra poder pensar, pra poder vender seus produtos. Então primeiro vem o termo hi-fi, vêm os aparelhos de som de alta fidelidade. E aí o termo lo-fi só vai surgir, talvez, reza a lenda, que foi com o programa chamado Lo-Fi da WFMU, que é uma estação de rádio de Nova York, de um radialista chamado William Berger. Então o quê que ele fazia nesse programa? Ele rodava fitas cassetes mandadas pelas pessoas, por músicos amadores, daí a piada, porque como essas gravações demo dos anos 80 eram muito ruins, eram muito precárias, começou a se chamar isso de lo-fi. Daí em diante, o termo passa a ser empregado pra essa música, que não é a música do mainstream, que não é a música do topo das paradas, que não é a música super produzida, que foi gasto dezenas de reais ou dezenas de milhares de reais pra ser produzidas. Só é importante lembrar que não quer dizer que é porque tu tá gravando em casa que tua gravação vai ser lo-fi. Pode ser que tu faça uma gravação muito boa em casa. Assim como tem muita gravação feita em estúdio que é de baixa qualidade.

RUFM: Como você disse, o lo-fi está associado a uma cultura underground e privilegia uma produção independente e alternativa. Qual sua avaliação desse movimento de ir contra o mainstream?
Marcelo: Como os artistas que produzem música de baixa qualidade, de baixa definição, vamos chamar assim, não costumam estar nesse circuito, existe ali uma possibilidade de tentar criar novas linguagens, de produzir novos modos de pensar a música. E aí existe uma certa liberdade de pensar como vai ser a mixagem, daqui a pouco a voz não vai ser o elemento principal, não vai tá na frente da mixagem, vão ser outros instrumentos. Talvez a estrutura da música não vai ser aquele padrão "introdução, verso, refrão". Talvez o artista não vai se preocupar tanto assim com a afinação, então isso vai criando outros mundos possíveis pra música e que depois a indústria, o mainstream lá, vai acabar se apropriando. O interessante de ver isso é comparar o primeiro disco do Nirvana, o Bleach, com o segundo, Nevermind; não tá dentro da lógica do lo-fi, do hi-fi, mas tá dentro de uma lógica de uma produção precária comparada com a produção mais bem retocada e envolvendo muitos equipamentos e dinheiro pra ter uma produção de qualidade. Então, o circuito underground tá sempre alimentando o mainstream com novidades.

RUFM: Qual a diferença entre o lo-fi e o lo-fi hip hop, que se popularizou no YouTube?
Marcelo: É um pouco estranho pensar em diferença. Porque o lo-fi não é um gênero musical, isso é uma coisa que as pessoas falam às vezes e não é muito correto dizer, porque existem artistas folk que fazem gravações lo-fi, existem artistas punk, existem artistas de metal extremo, existem artistas sertanejo até, daqui a pouco, não sei, mas é uma possibilidade. Lo-fi pode ser encarado como uma prática de gravação, até uma prática de composição, mas não se atém a um gênero específico. Então, o hip hop lo-fi é um tipo de gênero que se alinha à concepção do que é uma prática lo-fi. Não tem muito de hip hop no sentido que a gente tá habituado, não é uma música muito pra dançar, é uma música mais pra ficar de boa, é uma música mais tranquila, e que incorpora a ideia de limitações técnicas. A gente escuta nas gravações de lo-fi hip hop o som de fita cassete velha, o risco do vinil, vinil velho, reduções de frequência, o agudo é um pouco amaciado, não tem muito brilho na gravação. Mas tudo isso é “purpurina”, vamos chamar, é tudo produzido, eles não pegam necessariamente uma fita cassete e gravam com uma fita cassete, eles fazem no computador e colocam o plugin que simula esses efeitos de fita cassete.

Marcelo faz parte da banda Gentrificators (Foto: Arquivo Pessoal)

Marcelo faz parte da banda Gentrificators (Foto: Arquivo Pessoal)

RUFM: Como aconteceu sua aproximação pessoal com o lo-fi?
Marcelo: Desde o início dos anos 2000, eu tinha muito interesse em tentar gravar a música que eu produzia em casa, porque eu ficava muito frustrado quando eu ia nos estúdios aqui de Porto Alegre, porque quanto tu vai, tu tem uma banda e tu não tem muito dinheiro, eles fazem a gravação do jeito padrão. Existe um jeito de fazer quase que industrial, assim, grava a banda, o instrumental, e depois canta a voz por cima, tá feito tua demo. E isso não permitia o tempo livre pra tentar microfonar de jeitos específicos, testar instrumentos diferentes, testar pedais de efeitos diferentes. Então com o computador e com as placas de áudio externas portáteis, isso se torna possível. E daí em diante, todos os projetos que eu tive, sempre privilegiaram a gravação em casa. Isso aconteceu com minha primeira banda, em meados de 2000, que era a Musical Amizade, e depois com a banda atual que eu tenho, que é Gentrificators. Os dois nomes são absurdamente irônicos, diga-se de passagem. Mas é isso. A gente gravou todos os nossos materiais em casa mesmo. E me interessa essa produção amadora, de ser um espaço de criação e também um espaço político de, enfim, a gente tá de saco cheio das formas tradicionais de se produzir música, porque no fim das contas são sempre as mesmas práticas, as mesmas estruturas, as mesmas formas e os mesmos assuntos nas músicas que circulam na grande mídia.

RUFM: Você considera a produção das suas bandas lo-fi?
Marcelo: Todas as bandas que eu tive fizeram gravações em casa, mas se as gravações são lo-fi ou não, é um pouco complicado de responder, porque às vezes depende muito do ponto de observação de quem tá ouvindo. Algumas gravações que a gente fez em casa têm uma resolução razoavelmente boa. Às vezes o lo-fi não é só "ah, tem um sonzinho de disco velho, de fita cassete mofada", ela se estende por vários parâmetros e a gente vai descobrir baixa definição nas gravações profissionais também.

RUFM: Você tem dois livros publicados que abordam o lo-fi, Lo-fi: música pop em baixa definição (Editora Appris, 2017) e Imagem-música em vídeos para a web (Editora Kazuá, 2013). Nesses anos de pesquisa, você analisou o lo-fi enquanto técnica musical e enquanto aspecto sociológico. Pode comentar sobre isso?
Marcelo: Uma das coisas que a gente tenta fazer na ciência é romper com o senso comum de que existiria uma separação entre a cultura e a tecnologia, ou entre a sociedade e a tecnologia. Na verdade, essas duas coisas elas andam juntas, elas são amálgama, toda tecnologia nova que aparece no nosso dia a dia ela é manifestação de uma máquina coletiva de desejo, de coisas que a gente gostaria, de soluções que a gente espera que aconteçam no mundo. E a mesma coisa acontece ao contrário, as tecnologias modificam a nossa forma de transformar as coisas, de produzir cultura. Só pra ficar no exemplo, no começo do século passado, as bandas de jazz que tocavam ao vivo em bares, sei lá, uma música podia durar 30 minutos, até uma hora, e depois — quando vem o disco de 45 rotações por minuto, ou ainda antes, o de 78 rotações, em que só cabia de três a cinco minutos de áudio em cada lado — os artistas de jazz são obrigados a reduzir as suas improvisações pra esse tempo. E isso vai forçando com que surja o formato canção, "introdução, verso, refrão", que vai se popularizar. Então é a tecnologia que modifica a cultura. Então, me interessou pensar como o lo-fi como uma prática de gravação, essa questões dos aparelhos, elas ficam ainda mais evidentes na produção da música.

RUFM: Na sua visão, o lo-fi ainda conquistará um espaço maior no Brasil?
Marcelo: Se não existe um gênero lo-fi, mas uma prática lo-fi, a gente tá falando de uma política, de uma forma de visão de como se deve conceber a música. E essa forma de conceber a música, ela tá bem espraiada no Brasil, em diferentes gêneros. Não necessariamente a música deles vai ter uma atmosfera sonora suja, mas existe essa prática de pensar outras formas de desenvolver música que não sejam iguais às que estão no topo das paradas hoje - basicamente é o sertanejo universitário, né? Então é um pouco isso, eu acho que na real existe um espaço sendo ocupado muito grande por artistas que pensam a música de uma forma diferente, que não seja ali do mainstream, que não necessariamente vai ser o lo-fi. Agora se a pergunta tá se dirigindo ao hip hop lo-fi, por exemplo, a gente tá vendo que tá se popularizando muito, a gente tem artistas que tão circulando em playlists nacionais, e até internacionais, principalmente com o diálogo com o cloud rap, com o trap, e com outros gêneros aí que tão se popularizando na Internet atualmente.

Entrevista de Mateus Brisa com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira. As respostas do entrevistado podem ter sofrido pequenas modificações para melhor leitura e compreensão.

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