24/09/20

60 anos de Quarto de Despejo: diário de uma favelada

Após o lançamento de "Quarto de Despejo: diário de uma favelada", Carolina Maria de Jesus lançou mais três livros em vida e teve quatro publicações póstumas (Foto: Instituto Moreira Salles)

Em 2020, o livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada completa 60 anos. A obra testemunhal mostra o cotidiano dos moradores da favela do Canindé, em São Paulo. A autora Carolina Maria de Jesus escreve sobre a miséria, o descaso, o preconceito e, principalmente, sobre a fome que é realidade no cotidiano das favelas entre os anos de 1955 e 1960.

Ao longo de toda a obra, a autora demonstra indignação com a violência policial, com a falta de alimentos, de educação e de higiene básica, e com a agressão que as mulheres vivenciavam. Carolina relata de maneira muito triste as angústias do seu dia a dia. Ainda assim, ela manifesta esperança em, um dia, levar uma vida melhor.

Seis décadas se passaram desde o lançamento de Quarto de Despejo e a situação da população que vive nas favelas parece não ter mudado. Segundo dados do Monitor da Violência, levantamento feito pelo portal G1, 75% das mulheres assassinadas no primeiro semestre de 2020 são negras. Ainda de acordo com o levantamento, 3.148 pessoas morreram vítimas de ações policiais nos primeiros seis meses deste ano. Elisângela Aparecida, doutora em Literaturas de Língua Portuguesa e professora do Instituto Federal do Sul de Minas, descreve como a autora do Quarto de Despejo olharia para as favelas de hoje:

“Se Carolina pudesse visitar as favelas brasileiras do século 21, iria vislumbrar que a ausência de ações de estado ainda é uma realidade nesses lugares, veria também o quanto essas favelas se multiplicaram neste país. Possivelmente, iria se escandalizar com a violência das abordagens policiais, com a dimensão do tráfico de drogas que corrói por dentro esses espaços. Todavia, poderia vislumbrar o empreendedorismo negro, as ações sociais das ONGs, a concretização da cultura de rua no grafite que colore as paredes de algumas comunidades. Certamente, se apaixonaria pelo rap, poesia das ruas a espalhar pelo Brasil o olhar crítico e reflexivo sobre a nossa sociedade, tal como ela fez 60 anos antes.”

"Quarto de Despejo: diário de uma favelada", de Carolina Maria de Jesus, foi publicado em mais de 40 países e traduzido para 14 línguas (Foto: Reprodução/Internet)

O livro "Quarto de Despejo: diário de uma favelada", de Carolina Maria de Jesus, foi publicado em mais de 40 países e traduzido para 14 línguas (Foto: Reprodução/Internet)

Apesar de ter tido uma educação interrompida, a autora aprendeu a ler e escrever aos 7 anos de idade. Carolina Maria de Jesus era uma mulher negra, mãe de três filhos, catadora de lixo, escritora e romancista que colocou suas memórias em cadernos que ela encontrava nos lixos. Segundo a professora Elisângela Aparecida, a escrita era para Carolina uma forma de se defender das agressões que sofria:

“Fica claro que Carolina se difere dos moradores do cais, que usa a sua escrita e a escrita do diário como forma de se defender da violência verbal. O impacto desse lugar de fala é que faz de Quarto de Despejo um livro ímpar, panorama de uma visão demarcada e necessária sobre a nossa sociedade brasileira. A autora tem consciência do impacto que o seu livro provocaria, do poder da reflexão e da linguagem, pois ela afirma ‘não tenho força física, mas minhas palavras ferem mais do que espada e as feridas são incicatrizáveis.”

Desde sua publicação, o livro vendeu mais de 1 milhão de exemplares. Emanuel Régis, professor de Língua Portuguesa da Rede Pública do Estado do Ceará,  atribui o sucesso da obra devido a condição única do diário:

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Carolina era mulher negra, mãe de três filhos, catadora de lixo, escritora e romancista que escreveu suas memórias em cadernos encontrados nos lixos (Foto: Acervo Estadão)

“Muitas pessoas negras, sobretudo mulheres, têm dificuldade de ler o Quarto de Despejo, porque é um livro que as toca de um jeito profundo, causando uma forte identificação com as muitas vivências que a Carolina relata, como o racismo e o machismo, isso mostra o quanto as opressões que a Carolina viveu impactaram a sua escrita. Deve-se destacar, porém, que Quarto de Despejo é um diário bastante incomum. “Um estranho diário” como Carolina chega a se referir a ele em um de seus escritos. Afinal, os diários, textos em que se registram a intimidade, não são feitos para vir a público, quando isso acontece, geralmente, são diários de pessoas ilustres e poderosas, em geral homens brancos e não mulheres negras e pobres como Carolina.”

A catadora de lixo da década de 1950 é hoje considerada uma das escritoras mais importantes do país, tendo sido umas das primeiras escritoras negras a romper o silêncio estrutural que pessoas iguais a ela ainda sofrem em pleno século 21.

Reportagem de Danielle Gadelha com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira

*Essa matéria usou trecho do documentário Carolina, de 2003. Um filme de Jefferson De e produção TRAMA, com participação especial de Zezé Motta. O documentário ganhou o Prêmio da Crítica no Festival de Gramado como melhor curta-metragem.

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