27/05/20

Quais os reflexos da escravidão na sociedade brasileira?

Mesmo 132 anos após a abolição da escravatura, a população negra no Brasil ainda sofre as consequências deste crime (Ilustração: Roberto Weigand)

No dia 18 de maio de 2020, enquanto estava dentro de casa, o jovem João Pedro, negro, 14 anos, foi alvejado com um tiro de fuzil e morreu em uma operação conjunta da Polícia Federal e Polícia Civil do Rio de Janeiro. No mesmo estado e na mesma semana, outro João, negro, também foi assassinado. João Vítor Gomes da Rocha, 18 anos, foi baleado durante outra operação policial, dessa vez militar e civil. No momento do tiroteio, integrantes da Frente Cidade de Deus faziam entregas de cestas básicas quando foram surpreendidos pelos policiais.

No Brasil, um negro tem quase três vezes mais chances de ser assassinado do que um branco. O dado foi revelado pelo IBGE, no informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, que analisou o número de assassinatos entre 2012 e 2017. Foram 255.000 pessoas negras assassinadas durante o período. O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que 75,4% das mortes decorrentes de operações policiais no Brasil são de pessoas negras.

O problema da violência está longe de ser o único enfrentado pela população negra no País. Mesmo no século XXI, os negros são as principais vítimas da escravidão, que é considerada crime no Brasil desde a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Segundo a ONG Repórter Brasil, entre 2016 e 2018, de cada cinco trabalhadores resgatados em situações análogas à escravidão, quatro eram negros.

Margarida Marques é representante do coletivo de mulheres negras cearenses Inegra (Foto: Andréa Bardawill)

Margarida Marques é representante do coletivo de mulheres negras cearenses Inegra (Foto: Andréa Bardawill)

A Lei Áurea, que poderia representar um marco da libertação dos escravos, foi mais um capítulo da história de luta e resistência dos povos afrodescendentes. “Entre o que passou a ser ‘lei’ e a realidade, temos percorrido um longo e tortuoso caminho”, relata Margarida Marques, representante do Instituto Negra do Ceará (Inegra). “É preciso analisar as condições em que se deram a abolição. Simplesmente toda a população negra escravizada foi deixada à própria sorte. Sem terra, sem moradia, sem acesso à educação e a outros direitos”, pontua.

As condições precárias foram sendo transmitidas ao longo das gerações. “Essa imensa população [de ex-escravos] passou a viver às margens. Devemos entender o racismo que se constituiu desse processo. Negros e negras considerados não humanos, condição que foi justificada para sua escravização, ainda que libertos, não foram alçados à condição de Ser Gente”, destaca Margarida.

A desumanização dos povos africanos, usada como instrumento para escravização, é explicada pelo professor Luís Tomás Domingos, docente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e doutor em Antropologia e Sociologia Política. “O escravizado é aquele privado da sua liberdade, desumanizado, despersonalizado. O ser humano se tornou coisa, máquina produtiva. Foi transformado em mercadoria pela ambição imensurável de certos homens para manter seus poderes de dominação nkali [palavra nigeriana, da etnia Igbo, que significa ‘ser grande em relação ao outro]”, ilustra o professor.

Mário Magno é membro da coordenação nacional do Enegrecer, maior coletivo de juventude negra do Brasil (Foto: Matheus Alves)

Mário Magno é membro da coordenação nacional do Enegrecer, maior coletivo de juventude negra do Brasil (Foto: Matheus Alves)

Marcas profundas

A taxa de analfabetos entre a população negra é de 9,1%, mais que o dobro da visualizada entre a população branca, que é de 3,9%. Em 2012 foi aprovada a Lei Federal que regula o sistema de cotas para universidades federais. Ainda assim, dados da Síntese de Indicadores Sociais revelam que, em 2018, 18,3% dos jovens negros de 18 a 24 anos estavam cursando ou haviam cursado o ensino superior. Já entre jovens brancos da mesma faixa etária, esse número salta para 36,1%.

“Educação é poder. Então vemos que ela também constrói posições de garantias de hierarquias”, reflete Mário Magno, estudante da Unilab e membro da coordenação nacional do Enegrecer, maior coletivo de juventude negra do Brasil. Mário observa que as deficiências no acesso à educação para os negros no país é resultado de um projeto de poder vindo desde a época da colonização. “O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravização e, ao mesmo tempo, foi o último a criar universidade [na América do Sul]. Isso mostra o quanto a elite não queria que o povo tivesse acesso à educação. A gente vê que uma boa parcela da população negra não tem acesso à educação para que a gente não possa ter acesso, inclusive, a pensar em um processo emancipatório”, explica.

O professor Luís Tomás Domingos (Unilab) é doutor em Antropologia e Sociologia Política (Foto: Arquivo Pessoal)

O professor Luís Tomás Domingos (Unilab) é doutor em Antropologia e Sociologia Política (Foto: Reprodução/Internet)

Além das discriminações sofridas pela cor, as mulheres negras ainda lidam com preconceito de gênero. A Pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, publicada em 2019 pelo IBGE, revela que a renda média de uma negra está na base da pirâmide, abaixo da renda média de um homem negro, uma mulher branca e um homem branco, sucessivamente. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública registraram que 61% dos feminicídios no Brasil, em 2018, foram de mulheres negras. Elas também são maioria entre as vítimas de violência doméstica, 60% segundo dados de 2016, disponibilizados pelo Ligue 180, serviço de denúncias do Governo Federal. Margarida Marques, do coletivo Inegra, vê uma intersecção entre os números. “Temos que entender que a realidade de violência está presente na vida das mulheres negras desde sempre. Vendo os dados de feminicídios podemos dizer que essa violência se completa com a dificuldade em ter autonomia. Se trabalha, ganha menos. Se não trabalha, está economicamente dependente. Esses fatores aprofundam essa condição de opressão”, reflete.

Luís Tomás Domingos, professor da Unilab, defende que esses reflexos da escravidão são ainda mais profundos. “Eu penso que o grande desafio é a dificuldade de transição de ‘ser liberto’ ao ‘ser livre’. O ‘liberto’ pensa sempre em relação ao seu mestre. Continua no seu psiquê a dependência do seu mestre. Os princípios da lealdade e obediência ainda estão impregnados. O ‘livre’ se enfrenta onde estiver, enquanto sujeito autônomo”, analisa o professor. “A doença, acompanhada de traumas e estigmas também está do lado do ex-mestre que não suporta conviver e partilhar na mesma sala de aula, morar no mesmo bairro, compartilhar os espaços com descendentes dos seus colonizados ou escravizados. Esses estereótipos se estendem nas relações de poderes que se manifestam em formas de preconceitos, racismo e desigualdades sociais”, complementa.

Reportagem de Gustavo Castello com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira

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