30/10/19

Justiça restaurativa para uma cultura de paz

O termo justiça restaurativa foi cunhado pelo psicólogo norte-americano Albert Eglash e utilizado pela primeira vez em 1977, no livro Restitution in Criminal Justice (Foto: Thiago Quadros/Nexo)

De acordo com dados divulgados em 2016 pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), a quantidade de presos no Brasil é 197% maior que o número de vagas disponíveis em presídios e carceragens. O fato se torna mais alarmante quando se observa que dos cerca de 726 mil encarcerados no país, 40,2% ainda aguardam a decisão da Justiça sobre uma possível condenação.

A superlotação e a lentidão dos processos criminais são reflexos do sistema prisional brasileiro que valoriza a punição e a violência em detrimento à ressocialização e à educação. Entretanto, uma alternativa para a reparação de danos causados pelos delitos começa a ganhar espaço. Essa prática é conhecida como justiça restaurativa. Para entender melhor sobre essa iniciativa, a defensora pública e coordenadora do Centro de Justiça Restaurativa do Ceará (CJR), Érica Albuquerque, explica o funcionamento desse modelo:

"A justiça restaurativa é uma forma de justiça alternativa que se apresenta para a resolução de conflitos baseado no diálogo e na presença de todas as partes afetadas pelo conflito. Essas próprias partes, guiadas por um facilitador, irão dialogar a respeito do sentimento de necessidade provocado a partir da realização de um dano e com vista a reparar esse dano, responsabilizar o ofensor e que as partes possam seguir dali para frente com o pensamento no futuro em paz e satisfeitas".

Curso de formação de facilitadores realizado na Escola de Superior da Magistratura do Estado do Ceará (Esmec-Ce) em maio de 2018. O Ceará é uma das referências quando se fala em práticas restaurativas (Foto: Reprodução/Esmec)

Curso de formação de facilitadores realizado na Escola de Superior da Magistratura do Estado do Ceará (Esmec-Ce) em maio de 2018. O Ceará é uma das referências quando se fala em práticas restaurativas (Foto: Reprodução/Esmec)

De maneira oficial, a Política Nacional de Justiça Restaurativa no Poder Judiciário foi instituída no Brasil em 2016 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução 225. Mas, segundo o Ministério Público do Paraná (MP-PR), essa prática já acontece em território nacional desde 2005 e, a partir daí, se espalhou por meio de vários projetos pelo país.

Um dos locais onde a justiça restaurativa se faz presente é na comunidade do Ambrósio, localizado na cidade de Santana, no Amapá. A região é considerada uma das mais perigosas do estado e nos últimos anos, os números de crimes violentos estão diminuindo graças ao modelo restaurativo.

Carline Regina Nunes é juíza titular do Juizado Especial Cível Criminal do município de Santana. Ela comenta sobre a aplicação da justiça restaurativa e algumas práticas adotadas na cidade:

"A justiça restaurativa na comunidade do Ambrósio; como é que a gente faz? Reunimos a comunidade, em que escutamos os anseios e desejos de cada um e discutimos, em formato de círculos, o que cada um pode fazer para melhorar a sua relação com a comunidade. Desenvolvemos o senso de pertencimento e a responsabilidade de cada um. Já oferecemos cursos profissionalizantes lá, em que estão inseridos os círculos de diálogo entre os moradores da área. Hoje nós estamos com um projeto chamado 'Ar na comunidade' em que visa pintar todas as casas lá dessa comunidade. Para que as casas sejam pintadas, os moradores têm que participar dos círculos de diálogos. Também já fizemos cursos de formadores, de facilitadores com os moradores, para que eles mesmos tenham condições de resolverem os seus conflitos".

A justiça restaurativa também está inserida no âmbito escolar. No Ceará, o Projeto Contexto é fruto da parceria entre o Ministério Público, Governo do Estado, e organizações não-governamentais. A iniciativa surgiu em junho de 2018 e está capacitando e orientando professores e estudantes de 22 municípios sobre a utilização da mediação escolar para a solução de problemas. Rosângelo Marcelino é coordenador do Projeto Contexto. Ele ressalta a importância de utilizar a prática restaurativa dentro do universo escolar:

"Inserir essa temática no âmbito da escola é de fundamental importância. É estratégico para a gente estabelecer uma cultura de paz. Que a gente possa difundir técnicas onde os próprios estudantes resolvam os seus conflitos. A comunidade escolar resolva os seus próprios conflitos. E que a gente mude essa cultura. Uma cultura da não-violência, que é cada vez mais frequente e que precisamos dar uma resposta para a sociedade".

Nos 22 municípios em que está presente, o Projeto Contexto já abrangeu mais de 1500 professores de 134 escolas. Na imagem, uma formação sobre equidade de gênero e enfrentamento à violência contra a mulher realizada pelo projeto em junho de 2018 (Foto: Reprodução/Projeto Contexto)

Nos 22 municípios em que está presente, o Projeto Contexto já abrangeu mais de 1500 professores de 134 escolas. Na imagem, uma formação sobre equidade de gênero e enfrentamento à violência contra a mulher realizada pelo projeto em junho de 2018 (Foto: Reprodução/Projeto Contexto)

O Centro de Justiça Restaurativa, célula criada pela Defensoria Pública do Estado do Ceará, surgiu em abril de 2018 e é responsável por mediar conflitos que envolvem jovens e adolescentes. Desde que foi criado, 83% dos casos que passaram pelo local foram resolvidos sem a necessidade de retornar ao sistema prisional comum.

Os resultados do modelo restaurativo ajudam a entender que o diálogo entre as partes envolvidas em um conflito podem gerar desfechos mais rápidos e efetivos em relação ao que é praticado em outras esferas judiciais. A defensora pública Érica Albuquerque acredita que a justiça restaurativa pode ganhar mais espaço nos próximos anos e defende que haja mais investimentos nesse modelo:

"A justiça restaurativa tem sido um caminho em que a gente iniciou. Eu comecei a minha experiência pessoal em 2011, em diálogo com o sistema de Justiça, com o sistema de garantias de direitos, por meio da Terre Des Hommes, construindo projetos, discutindo em reuniões. E hoje já é uma realidade. Nós temos o Centro de Justiça Restaurativa, tem o Nujur [Núcleo Judicial de Justiça Restaurativa], do Poder Judiciário. E que o que a gente precisa é ter também essa participação maior da sociedade, para que nós tenhamos visibilidade e apoio, investimento de outras instituições e para que o projeto possa crescer e alcançar maior resultado".

Em 2016, o senador Ricardo Ferraço, do Espírito Santo, apresentou Projeto de Lei para a instituição do Ato Nacional dos Direitos das Vítimas de Crimes. A medida visa dar mais protagonismo às pessoas passivas de delitos, além de utilizar o modelo restaurativo para o desfecho de conflitos.

A matéria aguarda votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania desde o dia seis de agosto.

> Produção e reportagem: Pedro Silva e Carolina Areal
> Locução: Pedro Silva
> Apresentação: Carolina Areal

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