24/08/20

Cannabis: uma questão de saúde

No Ceará, 10 pessoas já conseguiram na justiça o direito de cultivar a planta para fins medicinais (Foto: Reprodução/Internet)

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentou, em dezembro de 2019, a fabricação para fins medicinais de produtos à base da planta Cannabis, a maconha. Já em abril deste ano, foi concedida pela Agência a primeira autorização a uma empresa para a produção e a comercialização de produtos do tipo. Mesmo liberando a fabricação e a venda, a Anvisa faz restrições sobre a prescrição de produtos de Cannabis por médicos, estabelecendo que eles só sejam indicados a pacientes quando forem esgotadas outras formas de tratamento já disponíveis.

A legislação brasileira versa sobre a proibição do cultivo de vegetais dos quais possam ser produzidos psicotrópicos, mas prevê que o Estado poderá autorizar a cultura para fins exclusivamente medicinais e científicos. Ainda assim, não há uma regulamentação clara sobre esse plantio, e quem precisa fazer uso de um produto de Cannabis para fins terapêuticos precisa importá-lo, um processo caro e burocrático. O advogado criminalista Ítalo Coelho explica que alguns pacientes entram com um pedido de salvo conduto, um habeas corpus preventivo, na justiça, para cultivar a Cannabis medicinal. “Os pacientes fazem uma desobediência civil, plantam a maconha em casa, ou seja, cometem um crime, embora de menor potencial ofensivo, pois é para o próprio consumo. Já passamos de 100 habeas corpus no Brasil. No Ceará são 10 autorizações desse tipo”, explica Ítalo, que faz parte da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma).

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Ana Carla Bastos foi a décima paciente a conseguir um habeas corpus preventivo que lhe assegura o cultivo da cannabis para fins terapêuticos (Foto: Arquivo Pessoal)

Médico com especialidade em saúde da família e comunidade, Igor Maia cita exemplos em que o produto de Cannabis é benéfico no tratamento. “A Cannabis tem mostrado melhora considerada no prognóstico de casos como: epilepsia, autismo, fibromialgia, doença de Parkinson, mal de Alzheimer, dores crônicas, enxaquecas, insônia, depressão. Ela combate os efeitos colaterais da quimioterapia e mais recentemente foi visto que há uma linhagem da planta que atua contra alguns tipos de células cancerígenas”, enumera Igor.

Membro da Sativoteca, associação que reúne pacientes que buscam o acesso à Cannabis para fins terapêuticos, o médico conta que nem sempre a planta foi alvo de políticas restritivas ou proibicionistas. “É uma planta utilizada há mais de 5000 anos, uma das primeiras a serem domesticadas pelo homem. Desde os primórdios, as comunidades tradicionais se utilizam dela para diversos fins, desde individuais até coletivos, de tratamentos somáticos a psicológicos. Até a metade do século passado, a Cannabis era livremente comercializada como ‘cigarros índios’, vendidos em farmácias e outros estabelecimentos”, ilustra Igor.

Quem relata com propriedade os benefícios do produto de Cannabis em seu tratamento é a fisioterapeuta Ana Carla Bastos. Sofrendo de ansiedade e depressão, e depois de muitos tratamentos, ela só encontrou alívio para o que sente fazendo uso da planta. “Eu estou sempre buscando psicólogos, psiquiatras… As medicações que me eram passadas me deixavam muito apática e me incapacitava. Sou professora de pilates clássico, além de cuidar da minha filha sozinha, então preciso estar ativa. Quando eu estou em crise de ansiedade, chego a ficar até quatro dias sem dormir, virada, direto. A maconha reduz a minha ansiedade e os pensamentos que são próprios da doença, melhora minha qualidade de sono, beneficiando meu humor”, revela.

Ana Carla foi a mais recente beneficiada pelo habeas corpus preventivo concedido pela justiça, tornando possível que ela cultive a planta para uso próprio e fins terapêuticos. “Fui a uma consulta médica e, após a indicação do produto de Cannabis, solicitei da Anvisa o direito de comprá-lo. Porém, quando vi que custava cerca de US$ 2.000,00, fora frete, ficou inviável. Então eu resolvi entrar com um processo para cultivar a planta”, relata Ana Carla.

O médico Igor Maia defende que a cannabis tenha fins terapêutico e auxilia no tratamento de muitas doenças. Destaca, ainda, o potencial econômico que a planta tem. "Há um potencial financeiro na legalização da Cannabis imenso devido à viabilidade da planta para mais de 4000 produtos. Desde tijolo para construção civil, tecido, até medicamentos" / Créditos: Arquivo Pessoal

O médico Igor Maia destaca o potencial financeiro da legalização da Cannabis devido à viabilidade da planta para mais de 4000 produtos, desde tijolo  até medicamentos (Foto: Arquivo Pessoal)

Tabu

Mesmo com pesquisas em todo o mundo sobre os benefícios da Cannabis para alguns tratamentos, a discussão no Brasil ainda se arrasta. O próprio termo “produto de Cannabis” definido pela Anvisa dá uma pista sobre os entraves que cercam o assunto. Segundo a Agência, “o atual estágio técnico-científico em que se encontram os produtos à base de Cannabis no mundo não é suficiente para a sua aprovação como medicamentos”. O médico Igor Maia discorda. “A Cannabis já tem respaldo científico e evidência clínica de melhora na evolução dos pacientes. Mães não estariam dando a seus filhos se não acreditassem que a planta lhes fizesse bem. Precisamos de ensaios clínicos para avançar nos estudos dos mecanismos de ação do processo terapêutico, mas já sabemos, por contexto histórico-clínico-neurocientífico, que a Cannabis é um dos fitoterápicos mais importantes já manipulados pelo homem em prol de sua saúde”, aponta Igor.

Na visão do advogado Ítalo Coelho, o assunto envolve ainda outras questões. “Historicamente por trás do discurso proibicionista, havia um discurso racista em relação às populações que tradicionalmente consumiam maconha no Brasil. As primeiras leis proibitivas tiveram um caráter racista”, analisa Ítalo.

Reportagem de Gustavo Castello com orientação de Carolina Areal e Síria Mapurunga

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