06/08/20

Pandemias e sociedade: entrevista com Dilene do Nascimento

Dilene do Nascimento é doutora em História, formada em medicina e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (Foto: Raquel Portugal/Multimeios Fiocruz)

Pandemias podem ser explicadas pelo contexto da época em que ocorreram. A peste bubônica, por exemplo, que dizimou populações na Europa e chegou ao Brasil séculos depois, é resultado de um sistema de saneamento básico precário e, muitas vezes, inexistente naqueles tempos. A gripe espanhola tomou as proporções que se conhece por causa dos conflitos na Primeira Guerra Mundial e chegou ao Brasil nas cidades onde se escoavam as mercadorias vindas de diversos países. As décadas de 1960 e 1970 questionaram paradigmas da sexualidade humana, até chegar aos anos 1980 e um desconhecido vírus fazer com que a humanidade discutisse formas de se ter maior liberdade sexual, mas aliada às medidas saudáveis.

O maior custo de uma pandemia é o humano. São milhares de vidas perdidas, deixando famílias enlutadas. Há outros custos desafiadores: aspectos socioeconômicos são afetados, populações vulneráveis ficam mais expostas, o desemprego aumenta, a renda das famílias cai, dentre outros. Porém, doenças que atingem regiões ou o mundo inteiro fazem com que sociedades busquem maiores avanços na ciência, questionem comportamentos e reflitam: a busca pelo desenvolvimento está sendo sustentável para a natureza?

Conversamos com Dilene do Nascimento, professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, órgão ligado à Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Dilene é doutora em História, com formação em Medicina. Suas linhas de pesquisa aliam essas duas áreas do conhecimento científico e ajuda-nos a compreender um pouco sobre como outras pandemias nos afetaram e como podemos fazer paralelos com a atual situação em que vivemos. Confira a entrevista:

Rádio Universitária FM:  De que maneira pandemias, como a da peste bubônica, influenciaram ou moldaram sociedades ao longo dos anos?

Dilene do Nascimento: Em se tratando de epidemia, um fenômeno coletivo, as análises históricas contribuem para revelar as relações sociais e políticas engendradas por determinada sociedade na forma como reage e interage com a doença. A possibilidade de morte em massa mobiliza as sociedades que buscam, por meio de rituais religiosos ou leigos, reafirmar valores sociais e modos de compreensão sobre a doença, saúde, morte e vida. Dessa forma, podemos pensar que a reza hoje não é suficiente, porque a doença não é mais representada como castigo divino como o foi à época da epidemia de peste no século XIV, que dizimou cidades inteiras, quando procissão e reza era a estratégia de enfrentamento da doença. A ciência, a essa época, não estava desenvolvida para dar explicação do fenômeno epidêmico, e os médicos não iam além da descrição da doença. Um indício para além do religioso nos é mostrado pelas máscaras que os médicos usavam em forma de um longo bico de pássaro, contendo ervas aromáticas para afastar os eflúvios da peste. Séculos depois, o Brasil veio a sofrer também com a peste bubônica. Em 1899, ela aportou no Brasil. A essa altura, a bacteriologia, que trouxe o micróbio para a cena das epidemias, mostrou-se a ferramenta adequada para fazer frente à peste, possibilitou o avanço do conhecimento científico sobre a doença na década de 1890: a identificação do bacilo causador da doença, o Yersinia pestis; a criação de vacina e soro antipestoso; e a cadeia de transmissão do bacilo pela pulga do rato. As dificuldades de importação de soro pronto da Europa levou à criação, em 1899, do Instituto Butantã, em São Paulo, e, em 1900, do Instituto Soroterápico Municipal (hoje Fundação Oswaldo Cruz), no Rio de Janeiro, ambos com a finalidade de produzir soros e vacinas antipestosos. Essa foi mais uma epidemia enfrentada por Oswaldo Cruz no cargo de diretor geral de Saúde Pública. A peste bubônica, que no período de 1900 a 1903, causou a morte de 1069 habitantes do Rio de Janeiro, seria controlada pelo extermínio dos ratos e pelo uso do soro e da vacina fabricados no Butantã e em Manguinhos. A medida sanitária de impor quarentena aos navios que aqui chegavam, vindos de Portugal, suscitou grande debate no país, sob a justificativa de que essa medida impactaria de forma muito negativa a economia brasileira. Observa-se que esse debate entre saúde e economia é recorrente em alguns contextos de epidemia.

Dilene do Nascimento conta que os médicos usavam máscara em forma de um longo bico de pássaro, contendo ervas aromáticas para afastar os eflúvios da peste (Foto: Wikimedia Commons)

Dilene conta que os médicos usavam máscara em forma de um longo bico de pássaro durante a peste bubônica (Foto: Wikimedia Commons)

RUFM: Quais medidas foram tomadas no Brasil para combater a gripe espanhola?

Dilene: A gripe espanhola se constituiu como pandemia, no pós I Guerra Mundial, no ano de 1918. Chegou ao Brasil pelo navio Demerara, vindo de Dakar, e dentre seus passageiros e tripulação já haviam várias pessoas infectadas. O navio aportou em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, produzindo importantes epidemias nessas cidades portuárias, espalhando-se para o território nacional. Causada por um vírus, à época desconhecido, com alta velocidade de transmissão, seus sintomas se assemelhavam, inicialmente, a uma gripe. Assim, o diretor de Saúde Pública à época, Carlos Seidl defendeu, em reunião na Academia Nacional de Medicina, em 11 de outubro, que se tratava de uma gripe benigna, não passava de uma “simples influenza”. Dessa forma, as medidas de proteção da população e de combate à doença demoraram a ser colocadas em prática. O Carlos Seidl foi exonerado e Theóphilo Torres, que assumiu o seu lugar, convidou o Carlos Chagas, cientista do Instituto Oswaldo Cruz para assumir o combate à doença. Chagas criou cinco hospitais de emergência e 27 postos de atendimento à população. Panfletos com orientações sobre a doença foram largamente distribuídos. A população recorreu a todas as mezinhas que conhecia para se salvar da doença. Dizem que foi aí que nasceu a caipirinha, porque era altamente recomendável pela própria população uma mistura de limão, mel e aguardente. O vírus da gripe espanhola foi devastador num mundo já combalido em fins da 1ª Guerra Mundial. No mundo todo matou de 20 a 50 milhões de pessoas. No Rio de Janeiro, a epidemia da gripe espanhola, que durou de setembro a novembro de 1918, matou 15 mil pessoas, de uma população de menos de um milhão de pessoas. Calcula-se que em todo o Brasil, a doença levou ao óbito 35 mil pessoas. Na verdade, não foi uma “gripezinha”.

RUFM: Em termos de relações sociais, houve mudanças significativas nas sociedades que enfrentaram a peste bubônica e a gripe espanhola?

Dilene: O que chama atenção no que diz respeito às relações sociais foi o Carnaval de 1919. Ele é descrito como uma explosão, com carros alegóricos fazendo referências à gripe espanhola. É como se o medo da população, a tristeza pela impossibilidade de cumprir os rituais fúnebres de seus mortos e toda a ameaça trazida pela pandemia que estava represada, no Carnaval explodiu. Do ponto de vista político, em 1920, foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública que passou a coordenar a política de saúde no país.

RUFM: Há cerca de 40 anos, o mundo conhecia as ameaças do vírus HIV e da doença causada por ele, a Aids. Embora os meios de comunicação fossem mais precários em relação aos de hoje, foi uma pandemia televisionada, o que tornava aquilo muito próximo da realidade das pessoas. No começo, tal como agora, não havia muita informação sobre o vírus. Em decorrência disso, houve medo generalizado e também muito preconceito. Como a senhora compara o cenário que vivemos hoje em relação à Covid-19 e aquele vivido nos anos 1980, com a pandemia de Aids? Acha que melhoramos?

Dilene: A Aids surgiu ainda na ditadura, num processo de abertura lenta, gradual e segura, mas ditadura. E foi exatamente na luta contra a ditadura que várias lideranças foram forjadas, lideranças essas que vieram assumir papel fundamental na luta contra a Aids. Assim, nós tínhamos a essa época a ciência consolidada e respeitada e que foi bastante célere na busca do conhecimento sobre a doença, movimentos sociais crescentes e o processo de redemocratização em andamento. Quando os casos de Aids começaram a aumentar aqui no Brasil, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, e a resposta do Estado não vinha na mesma velocidade, os atingidos pela doença se organizaram em ONG's/Aids e passaram a exigir do Estado as informações sobre a doença e assistência aos doentes. A meu ver a Aids inaugurou o processo de mobilização e organização de pessoas atingidas por determinada doença. Ao mesmo tempo trouxe à tona o enorme preconceito da sociedade brasileira contra os homossexuais masculinos. Assim, com a pressão das Ongs/Aids, com a pressão internacional, pois se tratava de uma pandemia, o governo brasileiro também se mobilizou para enfrentar a pandemia no sentido de controlar a doença e dar assistência aos doentes. Chegamos a ter um programa nacional modelo no enfrentamento da Aids. Aí voltamos à pergunta: “Acha que melhoramos?”.

xxxxx(Foto: Luna Artuch)

A professora Dilene do Nascimento acredita que a pandemia de Covid-19 será um grande marco na história, assim como a  Peste Bubônica e a Gripe Espanhola (Foto: Luna Artuch)

RUFM: E o Brasil de hoje, em que difere daquele dos anos 1980/1990 em relação a um problema de saúde mundial?

Dilene: A meu ver, a pandemia de Covid-19 desnudou as crises política e econômica que já estavam em curso. Quando vivenciamos uma crise sanitária, a população precisa de informação sobre o que está acontecendo, quais são as ameaças às quais ela está exposta e um comando unívoco para aceitar as medidas que venham a ser propostas. Sempre existem vozes dissonantes, isso é compreensível, mas a orientação que vem da autoridade governamental precisa ser clara e unívoca. Nessa pandemia tivemos uma singularidade que torna a execução das medidas por parte da população mais difícil por vários fatores: até então, em todos os momentos anteriores de pandemia, somente os doentes eram isolados. Com a Covid-19, o isolamento é para todos, independentemente, de estarem ou não infectados. Hoje a Ciência está mais desenvolvida que há 40 anos, a tecnologia de comunicação é altamente avançada, a população não quer morrer, mas as vozes dissonantes do que deve ser feito no momento vêm da própria autoridade governamental. Então nós estamos numa situação bastante vulnerável, à medida que se trata de um vírus novo, para o qual não temos remédio comprovadamente eficaz, não temos vacina, ele é de rápida transmissão e com possibilidade de evoluir grave.

RUFM: A senhora acha que teremos mudanças significativas como sociedade depois dessa pandemia? Acha que ela será um marco tão grande na história como foram a Peste Bubônica, a Gripe Espanhola e a Aids?

Dilene: Sem dúvida, essa pandemia será também um grande marco na história. Quanto às mudanças significativas como sociedade, me ocorre que os grupos mais vulneráveis, em vista da desigualdade social existente no país, estão na luta e têm grande chance de saírem fortalecidos.

Entrevista de Gustavo Castello com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira. As respostas da entrevistada podem ter sofrido pequenas modificações para melhor leitura e compreensão.

Tags:, , , , , , ,

Deixe uma resposta

*