23/11/20

Clarice Lispector: 100 anos da escritora das entrelinhas

Clarice Lispector é considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX (Foto: Madalena Schwartz/Acervo Instituto Moreira Salles)

“Escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu.”

O trecho faz parte do romance Água Viva da escritora Clarice Lispector. A autora nascida na Ucrânia que chegou ao Brasil ainda bebê é chamada por muitos pesquisadores como a “escritora das entrelinhas”. Com uma técnica de escrita diferenciada, Clarice desafia o leitor a decifrar o que está por trás da subjetividade. A escritora trouxe para a literatura brasileira uma linguagem poética e inovadora em relação a temas tradicionais, como a maternidade, a casa e os filhos. O universo clariciano é imprevisível e, muitas vezes, incompreendido. Relances da personalidade de Clarice estão presentes em toda a sua obra.

Mas antes de se tornar romancista, Clarice Lispector era jornalista. Ela foi repórter e redatora da Agência Nacional durante o período do governo de Getúlio Vargas. Nessa época, poucas mulheres trabalhavam nas redações. A professora Maria Elias, do departamento de Letras Vernáculas da UFC - Universidade Federal do Ceará, explica que Clarice ter sido jornalista impactou positivamente nas suas obras:

“O jornalista tem a capacidade, é treinado e tem a percepção, talvez, a vocação, de se preocupar com os detalhes, com o cotidiano. Às vezes, isso parece muito corriqueiro, muito banal, mas a Clarice soube fazer desses temas corriqueiros a matéria para as suas crônicas, que era o que ela publicava nos jornais. E com enfoque, sobretudo, na questão da mulher. São crônicas, sobretudo, dirigidas à mulher, aos problemas, as perspectivas do mundo feminino.”

Clarice Lispector é descendente de judeus e veio com a família para o Brasil fugindo das perseguições antissemitas durante a Guerra Civil Russa. (Foto: Acervo Instituto Moreira Salles)

Clarice é descendente de judeus e veio com a família para o Brasil fugindo das perseguições antissemitas durante a Guerra Civil Russa (Foto: Acervo Instituto Moreira Salles)

Em 1943, aos 23 anos de idade, Clarice lança seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem. A obra garantiu à escritora o prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras. A partir daí, Clarice se tornou autora de livros infantis, contos, crônicas, romances e novelas. Destaque para as obras A Paixão Segundo G.H, de 1964, A Hora da Estrela, de 1977, e a coletânea de contos Laços de Família, de 1960.

Fernanda Coutinho é professora do Departamento de Literatura da UFC e co-organizadora do livro Visões de Clarice Lispector: ensaios, entrevistas, literaturas, lançado este ano em comemoração ao centenário de Clarice. Ela explica o porquê do universo clariciano ser tão importante para a literatura brasileira:

“A importância de Clarice Lispector para a literatura brasileira advém de muitos fatos, um deles talvez seja a ousadia de sua escrita, que faz o leitor se deter nos surpreendentes jogos de linguagem que ela constrói. Um outro fator, certamente é a força enigmática de suas personagens, inclusive as infantis, pois é importante não esquecer que Clarice Lispector desafia o leitor desde a mais tenra idade, como por exemplo com o seu coelho pensante ou então com a galinha que tinha uma vida íntima e que se chamava Laura.”

Clarice fez parte do grupo de escritores da terceira fase do modernismo brasileiro, a chamada Geração de 45. Sua escrita singular está presente nas obras que ela escreveu até o momento de sua morte, um dia antes de completar 57 anos, em 1977. Seu último romance foi A Hora da Estrela. A história da solitária Macabéa e do escritor Rodrigo foi escrita quando Clarice já estava doente. Na obra, os personagens revelam um pouco sobre a própria escritora. O romance marcou a despedida de Clarice e é o seu romance de maior sucesso até hoje. Para a professora da UFC, Fernanda Coutinho, o sucesso das obras clariceanas se dá pela importância dos assuntos abordados:

“A permanência de Clarice Lispector nos dias de hoje, certamente tem a ver com a ideia de que a sua obra continua dialogando com as questões da sociedade contemporânea. Basta para isso, nós lembrarmos a questão do feminino, que se irradia por toda a sua produção literária. Uma outra problemática que também é inerente a obra clariceana é a relação entre o animal humano e os animais não humanos, isso representa um ponto nuclear nos seus escritos.

Clarice Lispector recebeu o Prêmio Jabuti por a Hora da Estrela, seu último romance (Foto: Acervo Instituto Moreira Salles)

Clarice Lispector recebeu o Prêmio Jabuti por a Hora da Estrela, seu último romance (Foto: Acervo Instituto Moreira Salles)

No dia 10 de dezembro de 2020 é comemorado o Centenário de Clarice Lispector. Como parte da celebração do centenário, a editora Rocco relança a obra completa da escritora. Também serão lançados uma biografia sobre Clarice e o livro Todas as Cartas, coletânea de quase 300 cartas que a autora trocava com a família e escritores, como João Cabral e Rubem Braga. As capas das novas edições são inéditas e foram pintadas pela própria Clarice.

A Universidade Federal do Ceará também participa das homenagens à autora. No dia do centenário, 10 de dezembro, a UFC realiza um event0 público virtual. A organização é feita pelo Departamento de Literatura, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e pelo Colégio de Estudos Avançados da universidade. As informações e o formulário de inscrição do evento vão estar disponíveis a partir da semana que vem no site da UFC.

Além disso, a publicação do livro Visões de Clarice Lispector: ensaios, entrevistas, literaturas, organizado pela professora Fernanda Coutinho e pelo pesquisador Sávio Alencar, também faz parte das comemorações do centenário. O livro já está disponível online no site repositorio.ufc.br.

Reportagem de Danielle Gadelha  com orientação de Carolina Areal e Igor Vieira

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